GENTE E COISAS DA CIDADE Presentes
Lydia Federici
A garota entrou na Sloper. Foi direta para o balcão das quinquilharias. Devia estar com muita pressa. Vinha afogueada.
E estava mesmo. Até sua voz corria:
"Quer me ver três brochinhos?", pediu, passando os olhos riscados de preto pelo dourado mentiroso de anéis, pulseiras e brincos. "Não. Nem vou escolher. Qualquer um serve. É para dar de presente a três amigas aniversariantes".
Vendo-a tão desinteressada na escolha, pensei na arte de presentear. E, com um sorriso, lembrei-me de um fato que Carolí, há tempos, me contou.
***
Ali na Vasconcelos Tavares existe uma pequena livraria católica. Vende, logicamente, livros. Livros religiosos. E possui também um bom estoque de terços, rosários, santos impressos. E em estatuetas.
Numa manhã, mal aberta a livraria, passou por uma de suas portas um padre. Ainda novo. Mas de batina já surrada. Sapatos cambaios. Que uma engraxada mensal não conseguia manter brilhantes. E dos quais uma hipotética escovada diária não desfazia as
manchas de barro.
Era um pároco de uma das igrejas de morro santista. Não sei de qual. Igreja modesta, com certeza. Para a modéstia de paroquianos de morro. Onde as esmolas pingam em notas miúdas. Onde se agradecem palavras de conforto com uma penca de bananas. Sabe
como são esses presentes de pobres reconhecidos, não sabe, amigo? É coisa que sai do coração. Pobrezinha de valor. Mas representa tanto para quem não dispõe de quase nada!
Pois o padre entrou na livraria e enquanto a moça, depois de saudá-lo, continuava a atender a uma freguesa, ele ficou olhando as prateleiras. Tinha um ar alegre no rosto cansado. Mais que alegre, até. Bem humorado. Assim como o de certas criaturas
que, levando bordoada da vida, continuam a sorrir. Com coragem e disposição. Achando que a melhor injeção contra durezas, dores e preocupações, ainda é uma atitude de sorridente desafio. De calma e ridente abnegação.
"Às suas ordens, padre".
"Sabe o que estou procurando? Um missal. Não. De lombada dourada não serve, minha filha. Veja aí o menos caro de todos. É pra mim, sim. O meu já nem dá pra ler. Faltam folhas. Está sujo. Liquidado de vez. Começo um 'requiem' que, na folha
seguinte, acaba num salmo de graças. Pode ser?" E riu.
"Não. Não está muito caro. Este serve bem. Eu nem precisaria estar gastando tanto. Mas veja. Quando chega o Natal, a minha boa gente não percebe que o que me faz falta mesmo é um missal novo. E me dá um leitão. Uma galinha. Quando faz frio ganho
meias de lã. Cachecol. Lenços constituem presentes de todo ano. Coitados. São bons demais. Mas bem que eles poderiam fazer uma vaquinha para um missal, não? Para que gastar dinheiro nessas outras coisas à toa?"
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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