GENTE E COISAS DA CIDADE Até elas se adaptam
Lydia Federici
A casa era grande. Grande demais até para quatro pessoas. Por que, sozinha, ela teimava em aguentar toda aquela trabalheira?
"É que eu não moro só". Sorriu. Foi para o jardim. Apontou para o alto. "Olhe só". Sorria, feliz. "Como posso abandoná-las? Para onde elas iriam se eu cedesse às ofertas dos compradores?"
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Neste mundo de dinheiro, a razão da velha senhora tão sentimental foi a coisa mais bonita e poética ouvida ultimamente. De fato, para onde iriam as pobrezinhas?
Só há coisa de um mês descobri como elas se arranjam. Conto a história não para influenciar a senhora tão humana. Ao contrário. Pretendo, apenas, sossegar-lhe o coração. Dizer-lhe que, de uma ou outra forma, elas descobrem um novo abrigo.
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A história é esta. Verinha mora num prédio de apartamentos. Na Ponta da Praia. Bem defronte ao Aquário. Quando o sol já caminhou metade do céu, o living passa a receber luz e calor. De forma
direta. Em cheio. E a grande sala fica parecendo uma dependência do inferno. Quente de abrasar. Não adianta baixar a persiana. Correr cortinas. As paredes fervem. O living fica inabitável.
"Se você abrisse aquela outra janela, formaria uma corrente de ar. Sempre refrescaria um pouco, não?"
Verinha coça a cabeça. Diz que sim. Então por que não abria? A jovem senhora cora. Começa a gaguejar. Diz que não pode abri-la. Mas por que? Emperrou? Não. Abrir ela abre. Abre bem. Sem dificuldade nenhuma. Mas só no inverno. Ora. No inverno faz
frio. Não interessa escancará-la. Com o calor é que há necessidade de ventilação.
Verinha remexe-se na poltrona. Olha os que a olham com interrogações muito curiosas no olhar. Por fim, depois de um gole gelado, toma uma resolução.
"Não posso abrir no verão porque ali dentro tem um ninho". Desabafado o motivo, explica o resto da história. Quando montaram as venezianas, alguma coisa não deve ter ficado bem ajustada. Logo que a família mudou para o apartamento, ela descobriu
que lá dentro devia haver algo fora do comum. Ouviu barulho. Só se tranquilizou quando começou a descobrir um ou outro fio de palha no chão. E um pipilar típico. Como poderia ela, abrindo a janela, sacrificar, talvez, aquele pequenino refúgio de
pássaros? E tinha mais. Não eram passarinhos comuns. Eram andorinhas. Andorinhas de peito branco. Asas pretas. Rabo em tesoura. Lindas e corajosas de fazer chorar. Desapareciam no inverno. Voltavam no verão. Há três anos ali nidificavam. Como
estragar-lhes o ninho? E queriam saber mais? Nem no inverno ela mexia na janela. Para não lhes estragar a casa brasileira.
Verinha mora num 11º andar. Como vê, minha amiga, até as andorinhas se adaptam ao progresso. Elas se arranjam, amiga. Basta-lhes um pouco de amor.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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