GENTE E COISAS DA CIDADE Foi possível ou não?
Lydia Federici
Juca e Cora não são puladores de carnaval. Nem fazedores de corso. Mas, como milhares de outros casais, não se trancam
em casa. De cara fechada à alegria barulhenta. Ou com medo de uma serpentina rodopiante. Ou para fugir à poeira dos confetes coloridos.
Acostumados a dar uma volta diária, não deixariam de ir até a praia, ver o sol cair atrás dos morros, só para evitar a movimentação carnavalesca. Acontece que, no ano passado, esperando vaga para atravessar a avenida da praia, Cora viu alguns
carros brancos de farinha. Num deles, percebeu, horrorizada, que os rapazes tinham o peito a escorrer sangue.
Juca, que já sabia, por comentários de amigos, que as brincadeiras eram feitas na base de ovos, de tomates, de água e pó de café, tranquilizou-a.
"Não é sangue. É massa de tomate. Você não vê que a cor é diferente?" Ela convenceu-se. Mas a primeira impressão, dolorosa, assustadora, não lhe saiu com facilidade da mente. Ficou ali. Bem presente. Machucando-a. Estragando-lhe o passeio iniciado
na tarde tão bonita.
Na praia, sentados num banco, de frente para o mar, olhavam os morros. O barulho das ondas não lhes chegava aos ouvidos. Como em ouras tardes. Tinha seu acalanto encoberto pelos cantos e pela gritaria da avenida. Mas, se não lhe ouviam a doçura da
voz, podiam ver a carícia das ondas pequeninas. Mais que ver. Sentir na alma toda aquela paz.
Foi de repente que Juca percebeu a presença dos rapazes. Traziam da praia cartuchos cheios de areia. Um deles, cercando o banco por trás, estava a pique de lhes atirar a poeira cinzenta. O senhor enfrentou-o. Decidido. Tão branco quanto suas calças
e camisa de linho. O rapaz compreendeu. Retirou-se a correr. Não sem derrubar pela oca o que não se atrevera a atirar com as mãos.
Não. Juca e Cora, como milhares de outros casais, não aderem ao carnaval. Mas, nos dias de folia, nunca deixariam de sair para ir ver o mar. Apreciar, como espectadores, a alegria dos que gostam de brincar o carnaval. Mas, depois do que viram,
depois daquilo por que passaram em 62, decidiram, como milhares de outras famílias, sair das loucuras e dos abusos do carnaval santista. Para que se aborrecer aqui? Ouvir os próprios guardas, sacudindo os ombros, resignados, a dizer que nada podiam
fazer?
Como que não se podia impedir tanto abuso?
Bastava decidir-se a isso. Organizar o policiamento. Contar com recursos e homens bem instruídos. Foi o que se fez. Foi possível ou não.
Juca e Cora, Maria e Paulo, a viúva Elza com seus cinco filhotes, já não mais precisam ter receio de assistir à alegria colorida e barulhenta do carnaval de Santos. Ele voltou a ser carnaval. Deixou de ser guerra. Estúpida e grosseira. Na alegria
mentirosa.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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