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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 351)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 1º de março de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Foi possível ou não?

Lydia Federici

Juca e Cora não são puladores de carnaval. Nem fazedores de corso. Mas, como milhares de outros casais, não se trancam em casa. De cara fechada à alegria barulhenta. Ou com medo de uma serpentina rodopiante. Ou para fugir à poeira dos confetes coloridos.

Acostumados a dar uma volta diária, não deixariam de ir até a praia, ver o sol cair atrás dos morros, só para evitar a movimentação carnavalesca. Acontece que, no ano passado, esperando vaga para atravessar a avenida da praia, Cora viu alguns carros brancos de farinha. Num deles, percebeu, horrorizada, que os rapazes tinham o peito a escorrer sangue.

Juca, que já sabia, por comentários de amigos, que as brincadeiras eram feitas na base de ovos, de tomates, de água e pó de café, tranquilizou-a.

"Não é sangue. É massa de tomate. Você não vê que a cor é diferente?" Ela convenceu-se. Mas a primeira impressão, dolorosa, assustadora, não lhe saiu com facilidade da mente. Ficou ali. Bem presente. Machucando-a. Estragando-lhe o passeio iniciado na tarde tão bonita.

Na praia, sentados num banco, de frente para o mar, olhavam os morros. O barulho das ondas não lhes chegava aos ouvidos. Como em ouras tardes. Tinha seu acalanto encoberto pelos cantos e pela gritaria da avenida. Mas, se não lhe ouviam a doçura da voz, podiam ver a carícia das ondas pequeninas. Mais que ver. Sentir na alma toda aquela paz.

Foi de repente que Juca percebeu a presença dos rapazes. Traziam da praia cartuchos cheios de areia. Um deles, cercando o banco por trás, estava a pique de lhes atirar a poeira cinzenta. O senhor enfrentou-o. Decidido. Tão branco quanto suas calças e camisa de linho. O rapaz compreendeu. Retirou-se a correr. Não sem derrubar pela oca o que não se atrevera a atirar com as mãos.

Não. Juca e Cora, como milhares de outros casais, não aderem ao carnaval. Mas, nos dias de folia, nunca deixariam de sair para ir ver o mar. Apreciar, como espectadores, a alegria dos que gostam de brincar o carnaval. Mas, depois do que viram, depois daquilo por que passaram em 62, decidiram, como milhares de outras famílias, sair das loucuras e dos abusos do carnaval santista. Para que se aborrecer aqui? Ouvir os próprios guardas, sacudindo os ombros, resignados, a dizer que nada podiam fazer?

Como que não se podia impedir tanto abuso?

Bastava decidir-se a isso. Organizar o policiamento. Contar com recursos e homens bem instruídos. Foi o que se fez. Foi possível ou não.

Juca e Cora, Maria e Paulo, a viúva Elza com seus cinco filhotes, já não mais precisam ter receio de assistir à alegria colorida e barulhenta do carnaval de Santos. Ele voltou a ser carnaval. Deixou de ser guerra. Estúpida e grosseira. Na alegria mentirosa.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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