Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003d345.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 10/24/15 17:31:35
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 345)

Leva para a página anterior
Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 21 de fevereiro de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Tocas

Lydia Federici

Não. A gente não imagina. como poderia fazê-lo? Normalmente, ninguém entraria em nenhum deles. Não por nunca passar-lhes pela entrada. Que, nesse particular,a té que eles estão sempre em nosso caminho até o centro. Mas como imaginar que, atrás daquelas paredes, existe vida humana? Assim?

Mas, quando sai a reportagem e as fotografias nos mostram os porões, não há como fugir ao conhecimento. A imaginação, solicitada pelo branco e preto dos clichês, é obrigada a funcionar. Com um arrepio, abaixamos a cabeça. Curvamos o corpo. De que outra forma poderíamos atravessar sob o teto baixo da galeria escura? Vendo um catre, sobre o qual pingam as gotas de trapos estendidos, sentimos a humildade. Pelas paredes sem janelas percebemos que não há renovação de ar. Nem claridade de sol. O cheiro de mofo entra-nos, asfixiante, até os pulmões. E, então, agoniados, incrédulos, perguntamos:

"Mas mora gente aí?"

Mora sim. Mora muita gente nos porões da cidade. Até naqueles que só tem um metro de altura dormem homens como você, amigo. E mulheres como você, amiga. Num canto em que não permitiríamos que nossos filhos sequer entrassem, para uma simples e rápida espiada curiosa, vivem crianças. Que ali nasceram. E ali vivem as suas pobres vidas. Sem a beleza simples de ar puro e de um pouco de luz natural. Vivem ali. De dia e de noite. Atiradas num colchão de pouca palha. Umas deitadas ao lado de outras. Sãs ou doentes. Mastigando uma côdea de pão. Cujas migalhas, na semiescuridão que o sol forte não penetra, ratos vem disputar.

Mas isso existe em Santos? Como é possível um horror desses?

Ora. Existe. infelizmente existe. É possível porque nem todos, na sua desgraça, sabem que há coisa menos triste que possa abrigar-lhes a miséria. Ou porque, sabendo-o, não encontraram um abrigo menos escuro. Ou porque, encontrando-o, não dispõem de uma nota a mais para pagar um quarto mais arejado. A verdade é essa. Há muita gente miserável na cidade. Na cidade que só constrói apartamentos de milhões. Onde as casas modestas? E, nelas, os quartos de aluguel baixo? Estão longe. Atrás dos morros. Como pagar condução para as idas ao trabalho?

E assim, os velhos porões, das velhas casas do centro, servem de moradia. O problema não é atual. Mas aumentou assustadoramente com o aumento da população pobre. Antes, os mesmos porões eram habitados. Por uma família que, nas noites quentes, se sentava nos passeios. Para tomar a fresca. Agora, subdivididos os quartos por um tabique de madeira ou por um cobertor, o mesmo porão abriga cinco, sete famílias. E graças a Deus por terem conseguido aquele teto. Tão à mão. Tão a jeito. E, apesar de caros, tão baratos. Pra que outros lugares poderiam ir? Alguém pode responder?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

Leva para a página seguinte da série