GENTE E COISAS DA CIDADE Choferagem
Lydia Federici
Menino, com carro, não se complica. Na hora de aprender a guiar, ele já sabe. Porque, sendo rico, há anos observa as
manobras que o pai executa. E que ele, na surdina, quando pilha as chaves, vai treinando em volta do quarteirão. Porque, sendo pobre, há muito tempo devora, com os olhos gulosos, o guiar do chofer de caminhão que mora ao lado. Quanto a treinar, ele
treina sim. Em imaginação.. Engrenando as marchas duras. Apertando o acelerador. Esterçando, com vigor, a direção pesada. Sendo, ele próprio, o motor do seu caminhão de para-choque escrito. Com uma frase de deboche, em geral. Ou de autoelogio.
Mocinha de hoje, também, tira carta, aos 18 anos, com a maior facilidade. A razão? É que, sabendo que terá o seu carrinho para os passeios independentes, faz como o irmão. Fica de olho na alavanca que muda as marchas. E para justificar o encosto no
namorado, diz que é para lidar com os pedais. Sabe como eles funcionam. Teoricamente, ao menos.
Mas uma senhora feita, mãe de brotos que já fumam, quando ganha um carro e se vê na gostosa obrigação de aprender a manejá-lo, apanha de dar dó. Como nunca se preocupou em saber como um automóvel anda, vira esquinas e para, seu aprendizado tem que
principiar exatamente pelo abecê da choferagem.
Quem quiser ver uma senhora realmente exausta de físico e de mente, é só olhar para uma matriculada numa autoescola. Ela coça as mãos vermelhas. Faz massagens nas pernas doridas. Geme ao endireitar as costas curvas. E o que é pior. Realmente
lastimável. Tem um ar de doidice nos olhos parados. Sua boca, sofredora, num rítus, só sabe dizer:
"Nunca que eu vou aprender... nunca que eu vou aprender..."
Com Alba sucedeu isso. Olhe que ela não é senhora de viver sentada. Ao contrário. É das ativas. Que, sem empregada, tem a casa, sempre, que é um brinco. Do living à cozinha. Mais até. Da porta de entrada à área de serviço. Mas suar como suou em
suas primeiras aulas no carro da autoescola, nunca suou. Em serviço algum de casa. Nem dependurada em escada. Nem dobrada sobre o chão.
Na quarta hora de aprendizagem, seu sofrimento atingia o máximo. Sentia faltarem-lhe pernas para os três pedais. Faltavam-lhe mãos para a roda de direção e para a alavanca das marchas. Seus dois bons olhos, até então, já não eram suficientes para
ver tudo que tinham que ver.
Guiando a 10 quilômetros, pela avenida da praia, numa hora de pouco movimento, a pobre senhora, muito empertigada, não saiba a que atender. O instrutor aconselhava-a. Carros passavam a buzinar. Crianças atravessavam a rua. Bem na sua frente.
Justamente na sua frente. Ela brecava. Mudava a marcha. Tornava a acelerar. E havia os carros estacionados. E os bondes que tilintavam. Quando o instrutor avisou-a que ela estava indo em zigue-zague, Alba, desatinada, não titubeou. Largou a
direção.
"É muita coisa. Guie o senhor por cima. Eu só fico com os pedais".

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|