GENTE E COISAS DA CIDADE Irreverência infantil
Lydia Federici
Com criança não se brinca não. Ouçam esta.
Dr. Guimarães estava doente. E o filho, muito novidadeiro como toda criança, contou o fato aos amigos. Estufando o peito de orgulho. Como se aquilo fosse proeza muito grande. Digna de inveja geral. A meninada da vizinhança, por um instante, ficou
impressionada. Doente? Doente, sim senhor. E de cama. Sem poder mexer-se. Não tinham reparado que ele, de manhã, não saíra para o escritório?
Como preocupação de criança desaparece logo, diante do convite de uma bala, a novidade foi esquecida. Só de noite, ao deitar-se, é que Manequinho se lembrou da história. Que teria o Dr. Guimarães?
No dia seguinte, antes de sair para a escola, ficou reparando se o seu amigo grande aparecia pela rua. Não o viu. isso queria dizer que ele continuava doente. Manequinho foi para a escola meio impressionado. Sabia que gente grande também fica
doente. Mas nunca pensara que isso podia acontecer com o Dr. Guimarães. Mormente a ponto de ter que ficar de cama. Ele nãod izia que cama era coisa só pra dormir? Ou pra embalar preguiça de gente mole?
À tarde, matadas as lições, na hora livre de ir para a praia, o menino tomou uma resolução. Reparou se o canivete de duas folhas estava bem no fundo do bolso das calças. Contou cinco bolinhas de gude, as mais bonitas, e enfiou-as no outro bolso.
Com oq ue tinha a fazer, não era hora de pensar em grandes brincadeiras.
Passou, decidido, pelo portão encostado. Chegou até a porta da frente da cdasa do amigo. Bateu no vidro e ficou, paciente, à espera. Quando a empregada, vendo-o, fez uma cara de assustada interrogação, o garoto sorriu.
"Vim visitar o Dr. Guimarães", falou muito sério. Antes mesmo de receber resposta, foi entrando. Buscou a escada e foi subindo. De dois em dois degraus. Sem pressa e sem barulho. No corredor de cima, descobriu a porta do quarto aberta. Devia ser
lá. Meteu a cabeça entre os batentes.
Dr. Guimarães, da cama larga e branca, virara a cabeça para ver quem chegava. Ao descobrir, à meia altura da porta, a carinha morena, levantou as sobrancelhas. Numa admiração alegre. Sorriu, convidando o garoto a entrar no quarto. Manequinho
aproximou-se da cama. Dando um "boa tarde" tão manso e macio quanto o deslizar de seus pés descalços. Sem esperar outro convite, passou as mãos pelo fundilho das calças sempre brancas de areia. Sentou-se, com toda a intimidade, na beirada da cama.
Sorria. Infundindo calor. Os olhos repuxados pelo sorriso, diziam de sua pena e de sua curiosidade. Logo que o amigo, emocionado, lhe agradeceu a gentileza da visita, Manequinho quis saber que doença ele tinha. Sarampo? Gripe? Tosse comprida? Dr.
Guimarães não quis preocupar a criança com a descrição de sua doença. Pra quê? Tão cedo? Segredou-lhe, então, bem baixinho:
"Tenho uma dor muito grande num fio de cabelo". E ficou a sorrir.
O garoto, por uns segundos, não abriu a boca. Ficou a olhá-lo. Perdido em conjecturas. Depois, muito calmo, receitou:
"Pra isso, chá de folha de zinco é bom!"
Quem, no Fórum, enfrentaria assim o Dr. Ariosto Guimarães?

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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