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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 335)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 9 de fevereiro de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Irreverência infantil

Lydia Federici

Com criança não se brinca não. Ouçam esta.

Dr. Guimarães estava doente. E o filho, muito novidadeiro como toda criança, contou o fato aos amigos. Estufando o peito de orgulho. Como se aquilo fosse proeza muito grande. Digna de inveja geral. A meninada da vizinhança, por um instante, ficou impressionada. Doente? Doente, sim senhor. E de cama. Sem poder mexer-se. Não tinham reparado que ele, de manhã, não saíra para o escritório?

Como preocupação de criança desaparece logo, diante do convite de uma bala, a novidade foi esquecida. Só de noite, ao deitar-se, é que Manequinho se lembrou da história. Que teria o Dr. Guimarães?

No dia seguinte, antes de sair para a escola, ficou reparando se o seu amigo grande aparecia pela rua. Não o viu. isso queria dizer que ele continuava doente. Manequinho foi para a escola meio impressionado. Sabia que gente grande também fica doente. Mas nunca pensara que isso podia acontecer com o Dr. Guimarães. Mormente a ponto de ter que ficar de cama. Ele nãod izia que cama era coisa só pra dormir? Ou pra embalar preguiça de gente mole?

À tarde, matadas as lições, na hora livre de ir para a praia, o menino tomou uma resolução. Reparou se o canivete de duas folhas estava bem no fundo do bolso das calças. Contou cinco bolinhas de gude, as mais bonitas, e enfiou-as no outro bolso. Com oq ue tinha a fazer, não era hora de pensar em grandes brincadeiras.

Passou, decidido, pelo portão encostado. Chegou até a porta da frente da cdasa do amigo. Bateu no vidro e ficou, paciente, à espera. Quando a empregada, vendo-o, fez uma cara de assustada interrogação, o garoto sorriu.

"Vim visitar o Dr. Guimarães", falou muito sério. Antes mesmo de receber resposta, foi entrando. Buscou a escada e foi subindo. De dois em dois degraus. Sem pressa e sem barulho. No corredor de cima, descobriu a porta do quarto aberta. Devia ser lá. Meteu a cabeça entre os batentes.

Dr. Guimarães, da cama larga e branca, virara a cabeça para ver quem chegava. Ao descobrir, à meia altura da porta, a carinha morena, levantou as sobrancelhas. Numa admiração alegre. Sorriu, convidando o garoto a entrar no quarto. Manequinho aproximou-se da cama. Dando um "boa tarde" tão manso e macio quanto o deslizar de seus pés descalços. Sem esperar outro convite, passou as mãos pelo fundilho das calças sempre brancas de areia. Sentou-se, com toda a intimidade, na beirada da cama. Sorria. Infundindo calor. Os olhos repuxados pelo sorriso, diziam de sua pena e de sua curiosidade. Logo que o amigo, emocionado, lhe agradeceu a gentileza da visita, Manequinho quis saber que doença ele tinha. Sarampo? Gripe? Tosse comprida? Dr. Guimarães não quis preocupar a criança com a descrição de sua doença. Pra quê? Tão cedo? Segredou-lhe, então, bem baixinho:

"Tenho uma dor muito grande num fio de cabelo". E ficou a sorrir.

O garoto, por uns segundos, não abriu a boca. Ficou a olhá-lo. Perdido em conjecturas. Depois, muito calmo, receitou:

"Pra isso, chá de folha de zinco é bom!"

Quem, no Fórum, enfrentaria assim o Dr. Ariosto Guimarães?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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