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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 333)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 7 de fevereiro de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Papagaio brasileiro

Lydia Federici

Contou-me um amigo, há certo tempo, que, aos domingos, na praia, entre os canais 3 e 4, sempre aparecia um homem. Um homem com costas, peito, cabeça, mãos e dedos carregados de papagaios. Não papagaio bicho-falante. Apenas papagaio de papel. Desses de empinar. Quando há um pouco de vento.

O homem aparecia pela praia. Metia-se na areia fofa. Procurava chegar-se aos grupos em que havia crianças. De pura esperteza, já se vê. Ali, entre os pequenos, é que estavam os possíveis compradores. Que marmanjo tem coragem pra tudo. Menos pra voltar a ser criança.

Até aí, aparentemente, nada de mais. Era um modesto comerciante a oferecer sua mercadoria. Se pagava taxa ou imposto, ignoro. Se tinha licença para vender um pouco de alegria também foi coisa que o amigo informante não me soube dizer. O caso é que ele tentava a gente miúda com a beleza de seus pequenos papagaios de folhas de papel de seda. E varetas de bambu.

Acontece, porém, que o pobre homem era patriota. Extremamente patriota. Só sabia fazer papagaios brasileiros. Todos eles, pequenos ou maiores, eram verdes. Com um losango amarelo. Tendo o centro, redondo, cor de anil. Não reparara bem. Mas parece que até a faixa branca existia. E as estrelas. Não todas. Mas um par, sim. Pelo menos.

"É permitido usar, assim, um dos símbolos de nossa terra? Num brinquedo que é arrastado pelo chão. Que será logo rasgado. Atirado num canto?"

Não. Não é. Não é permitido, amigo. De forma alguma. E aqui fia, na crônica, o seu protesto carregado de civismo. Muito justo. Que qualquer pessoa idônea, patriota, bem pensante, endossará. De muito boa vontade. Na certeza de, respeitando o símbolo, estar defendendo a Pátria. Ninguém pode brincar com símbolos de sua Pátria. Nem usá-los à toa.

Feito esse reparo, está encerrada a crônica. Definitivamente. O que, agora, muito em particular, continuo a escrever, é pensamento secreto. Só endereçado aos verdadeiros amigos. Que sofrem como sofrem os que amam sua terra. Principalmente nos momentos atuais.

Escute, amigo. Você sabe para onde vai papagaio? Quando a gente lhe amarra um bom barbante e o solta ao vento? Ele sobe, amigo. Sai do chão. Vai para cima. Para o alto. Fica por lá. Pairando, sobranceiro, sobre tudo. Altivo na imensidão livre. Orgulhoso de sua força. Da força de suas varetas arqueadas que aproveitam, num impulso propulsor, para o alto, as correntes que sopram brandas ou fortes.

Agora, pense um pouco. Ou melhor, não pense. Que pensar nisso deixa a gente maluca. Mas imagine só. Se você tivesse entre as mãos um papagaio colorido, exatamente como um daqueles do homem da praia, e se você conseguisse fazê-lo subir, que é que, empinando-o, na imaginação, você sentiria subir? Um simples papagaio? Ou a sua própria terra, nele tão coloridamente representada? Esas visão, embora simbólica, não o deixaria com a alma feliz? Com o coração mais alegre? Não lhe estufaria o peito de orgulho?

Pois é, amigo. A lei não permite. Mas se encontrássemos o homem dos papagaios brasileiros, perderíamos a chance de, pelo menos, iludir-nos?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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