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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 331)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 5 de fevereiro de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Santos à noite

Lydia Federici

Há cerração. Descendo a serra, na escuridão da noite, nada se vê. Só aqui embaixo, olhando para a frente, percebe-se sobre a cidade um céu avermelhado.

Refrigério ficou lá em cima. Agora é um ar pesado e quente que nos abafa. Pondo-nos o coração a bombear com força. Como é possível aguentar esse abafamento? Anos a fio? Quanto tempo de vida isso nos fará perder?

A pergunta fica lá por dentro. Sem resposta. Só desaparece, e de repente, quando um mau cheiro insuportável nos traz à estrada.

"É o lixo da cidade", diz, sem outro comentário, o chofer do Expressinho. E o lixo da cidade substitui o outro pensamento. Provoca, como o outro, a mesma inquietação. A mesma pena. O mesmo sentimento doloroso. Mas um, o primeiro, sendo natural, não chega a revoltar. E este, por falha humana, podendo ser remediado, sim.

O carro entra na cidade. Por uma avenida larga. Iluminada. Há um suspiro de alívio. De curta duração, porém. O chofer converge à esquerda. Por uma ruazinha estreita. Velha. Cuja escuridão caminha em direção ao negrume do cais. Algo de incomum surge na praça da velha estação da Inglesa. Está maior. É que arrancaram a cobertura que avançava sobre a praça. O prédio da "Santos-Jundiaí" mostra a fachada toda. Não é que sem aquele telheiro sua aparência tem uma beleza nunca antes percebida?

Mas não há tempo para tentar ver pormenores. Embora à meia luz. O carro entra na Rua do Comércio. A velha rua dos grandes armazéns de café. Plantados, eles também, em fila. Parede contra parede. Sobre o passeio estreito. Que uma luzinha amarela, triste, pobre, mal tira da escuridão.

Não há ninguém a caminhar pela rua cujas paredes armazenam milhões de cruzeiros. Em grãos ensacados. Em sacos empilhados. Não adianta pensarmos na fortuna dos armazéns. A rua deserta, escura, com sua tristeza silenciosa, impera negativamente sobre qualquer pensamento tranquilo. De alegria. De segurança. Nem a figura colorida de três mulheres que caminham rumo ao centro, olhando as portas escuras, dão uma nota alegre de cor ao negro disfarçado da Rua do Comércio. Por quê? Não sei. O centro de Santos, à noite, é assim. Triste de fazer chorar. Nem as praças iluminadas conseguem dar impressão de vida. De alegria. Ou mesmo de justo sossego. Algo de triste, muito pesado, envolve quem passa. Tira o brilho da luz. Enfeia uma ou outra vitrina iluminada.

No entanto, cinco minutos depois de uma boa corrida pela Conselheiro Nébias, as fontes brancas do Boqueirão lavam tristeza. Desanuviam os pensares escuros. O mar perfuma a alma. O feitiço, então, é tão grande, tão profundo, que não mais nos preocupamos em saber quantos anos de vida este abafamento nos tirará. Esquecemos o mau cheiro do lixo. Compreendemos o silêncio das velhas ruas estreitas e escuras. Amamos as mulheres de vestidos coloridos. Descansamos junto à noite de vida tristemente misteriosa da cidade.

Por quê? Porque isso tudo, afinal, faz Santos ser o que é. Um encanto em que, encantados, vivemos. No feio e no bonito. No bom e no ruim.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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