GENTE E COISAS DA CIDADE Previdência e providência
Lydia Federici
Dona Anita tem olhos. Que sabem ver. E, dentro da cabeça, ao contrário do que gostam de dizer os homens, um bom
cérebro. Pensador. Sonhador. Mas sobretudo, raciocinante.
Dona Anita não é de muito sair. Ou melhor: é de sair mas não de passear. Sai quando tem necessidade de fazê-lo. Quando não, prefere ficar em casa. Com um vestido folgado. Cavado. Que lhe descobre os braços balofos. Foi de casa que ela viu o
movimento dos últimos feriados. Que, caídos num fim de semana, trouxeram para Santos, todas as pessoas válidas de São Paulo.
Já na sexta-feira, a boa senhora chamou a atenção do marido. Que tantos carros passavam na corrida pela rua?
"Hoje é feriado em São Paulo, Nitinha. Todo mundo vem pra cá".
No sábado, na feira, apesar de ainda ser muito cedo, dona Anita danou-se para encontrar o que queria. Teve, aliás, duas dificuldades. uma, a de chegar-se às bancas. A outra, a de estender a mão com suficiente rapidez para agarrar a melhor alface
que mãos sardentas pretendiam lhe tirar. Mas enfim, bufando e gemendo, sempre conseguiu completar a lista. Com algumas substituições, é claro.
No domingo, depois de regar as avencas murchas da varanda, ela foi sentar-se ao lado do marido. Que lia os jornais. Ficou a olhar o movimento da rua. Para um carro conhecido, passavam quarenta de fora. Para um amigo do fim da rua, a quem queria
cumprimentar, tinha que investigar os rostos vermelhos e cinquenta pessoas que rumavam para a praia.
Isso tudo ela via. Apesar da catarata incipiente. E como ficou dito que ela era de ver e de raciocinar, não é de estranhar-se que seu cérebro se tenha posto em ação. Se, em três feriadinhos, a cidade, enchendo-se de gente, esvaziara-se de
comestíveis, que não iria acontecer pelo carnaval?
Dona Anita, mentalmente, fez seus cálculos. Fez um inventário do que havia no armário da cozinha. Das garrafas ainda cheias. Arrumadas sob os degraus da escala. Foi além dessa simples constatação dos
gêneros e bebidas existentes. Sempre mentalmente fez um cálculo do arroz, do feijão, das batatas que gastaria num mês. Da lataria que poderia armazenar. Das linguiças que poderia enfiar no congelador. Das cervejas que, com o calor, o casal mais os
amigos poderiam beber.
"Quimzinho. Reforce a verba. Vou comprar tudo desde já", exclamou, de repente. Ele largou os óculos. Sem atinar com a explosão gastadeira de sua econômica mulher.
"Carnaval. Quem não se prevenir vai passar mal. Eles acabam com tudo".
***
Previdência, minha amiga, é isso. Ver, com antecipação, o que vai acontecer. Providência é outra coisa. Foi o que dona Anita começou a fazer logo no dia seguinte. Comprando tudo que poderia comprar.
Deu pra entender? Se deu, aproveite a sugestão. É conselho de amiga.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|