GENTE E COISAS DA CIDADE Ventanistas
Lydia Federici
Escancaram as janelas nas noites quentes. Como é que eles podem resistir? O convite do retângulo escuro, apesar de
mudo, é muito forte.
***
Aconteceu na São José. Uma rua de chalés que se está granfinando. Com boas residências. Prédios de apartamentos de três andares.
Alba ouviu a história. O vizinho de duas casas além deixara, no segundo andar, uma janela aberta. Justamente sobre o abrigo do carro. Ladrão, em geral, tem, por necessidade, pernas atléticas. Pular para o quarto adormecido foi facílimo. Juntar
calças, paletó, dinheiro, relógio, idem. Estava tudo arrumado no cabide. Sobre a cômoda. Por que não aproveitar?
Sim. Alba sabia que, no verão, ventanistas não resistem ao convite de janelas escancaradas. Sabia. Mas arriscou. O ventilador só movia ar quente. Como dormir? Só abrindo a veneziana. A casa era alta. Nada havia, por baixo, que servisse de degrau.
Em todo caso, na dúvida, consultou o marido. Será que ladrão é como lagartixa? Capaz de grudar-se numa parede lisa? Chegaram à conclusão de que não. E a janela ficou aberta.
A janela ficou aberta mas Alba não dormiu. Ficaria acordada até o quarto refrescar um pouco. Depois trancaria a veneziana. E dormiria. Enquanto esperava, deitou-se na cama. Ligou o rádio de pilha. Colocou-o no travesseiro. Encostado à cabeça. Não
que tivesse vontade de ouvir música. Era apenas uma garantia. Com um disco a tocar, uma voz estranha a falar,não pegaria no sono.
Mas acontece que pegou. A canseira de noites mal dormidas, embalada pela suavidade de valsas e por um leve frescor que vinha do céu, adormeceram-na.
Acordou com a impressão de que algo, a seu lado, se mexera. Sem mover-se, ainda estremunhada, entreabriu os olhos. Uma grande mão escura, que a leve claridade da janela recortava com nitidez, estendia-se sobre seu rosto. Com o coração falhando uma
batida, prendeu a respiração. A mão aproximou-se de sua cabeça. Com o coração disparado, Alba fechou os olhos. Foi só o que fez. O ladrão que roubasse o que bem entendesse. Depois dele ter ido embora é que gritaria. Se continuasse com vida. Que, do
jeito que o coração lhe batia, era pra estourar de vez. Começou a rezar. Em agonia. A santo Antonio milagreiro.
O rádio, com muito cuidado, foi sendo afastado de sua cabeça. Percebeu quando o levantaram do travesseiro. Que lhe importava. Que o levassem. Só o que lhe interessava era sair viva daquele pavor. Que começava a enformigar-lhe todo o corpo.
Percebendo que o ladrão se afastava da cama, voltou a entreabrir os olhos. Ele caminhava com cuidado. Rumo à porta do corredor. Viu-lhe o tronco forte. Nu. Um short modelando-lhe os quadris estreitos. Pra onde ia o atrevido? Num décimo de segundo
percebeu quem era. A cabeça de cabelos espetados era inconfundível. Alba sentou-se na cama, deu um pontapé no marido, acendeu a luz e gritou: "Toninho!". Tudo ao mesmo tempo.
O filho, assustado, gaguejou que pegara o rádio para ouvir o jogo...
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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