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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 327)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 31 de janeiro de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Ventanistas

Lydia Federici

Escancaram as janelas nas noites quentes. Como é que eles podem resistir? O convite do retângulo escuro, apesar de mudo, é muito forte.

***

Aconteceu na São José. Uma rua de chalés que se está granfinando. Com boas residências. Prédios de apartamentos de três andares.

Alba ouviu a história. O vizinho de duas casas além deixara, no segundo andar, uma janela aberta. Justamente sobre o abrigo do carro. Ladrão, em geral, tem, por necessidade, pernas atléticas. Pular para o quarto adormecido foi facílimo. Juntar calças, paletó, dinheiro, relógio, idem. Estava tudo arrumado no cabide. Sobre a cômoda. Por que não aproveitar?

Sim. Alba sabia que, no verão, ventanistas não resistem ao convite de janelas escancaradas. Sabia. Mas arriscou. O ventilador só movia ar quente. Como dormir? Só abrindo a veneziana. A casa era alta. Nada havia, por baixo, que servisse de degrau. Em todo caso, na dúvida, consultou o marido. Será que ladrão é como lagartixa? Capaz de grudar-se numa parede lisa? Chegaram à conclusão de que não. E a janela ficou aberta.

A janela ficou aberta mas Alba não dormiu. Ficaria acordada até o quarto refrescar um pouco. Depois trancaria a veneziana. E dormiria. Enquanto esperava, deitou-se na cama. Ligou o rádio de pilha. Colocou-o no travesseiro. Encostado à cabeça. Não que tivesse vontade de ouvir música. Era apenas uma garantia. Com um disco a tocar, uma voz estranha a falar,não pegaria no sono.

Mas acontece que pegou. A canseira de noites mal dormidas, embalada pela suavidade de valsas e por um leve frescor que vinha do céu, adormeceram-na.

Acordou com a impressão de que algo, a seu lado, se mexera. Sem mover-se, ainda estremunhada, entreabriu os olhos. Uma grande mão escura, que a leve claridade da janela recortava com nitidez, estendia-se sobre seu rosto. Com o coração falhando uma batida, prendeu a respiração. A mão aproximou-se de sua cabeça. Com o coração disparado, Alba fechou os olhos. Foi só o que fez. O ladrão que roubasse o que bem entendesse. Depois dele ter ido embora é que gritaria. Se continuasse com vida. Que, do jeito que o coração lhe batia, era pra estourar de vez. Começou a rezar. Em agonia. A santo Antonio milagreiro.

O rádio, com muito cuidado, foi sendo afastado de sua cabeça. Percebeu quando o levantaram do travesseiro. Que lhe importava. Que o levassem. Só o que lhe interessava era sair viva daquele pavor. Que começava a enformigar-lhe todo o corpo. Percebendo que o ladrão se afastava da cama, voltou a entreabrir os olhos. Ele caminhava com cuidado. Rumo à porta do corredor. Viu-lhe o tronco forte. Nu. Um short modelando-lhe os quadris estreitos. Pra onde ia o atrevido? Num décimo de segundo percebeu quem era. A cabeça de cabelos espetados era inconfundível. Alba sentou-se na cama, deu um pontapé no marido, acendeu a luz e gritou: "Toninho!". Tudo ao mesmo tempo.

O filho, assustado, gaguejou que pegara o rádio para ouvir o jogo...


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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