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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 312)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão
expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 13 de janeiro de 1963 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta
transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Fontes e repuxos
Lydia Federici
Foi num verão passado. Numa noite de ar morno. Morno? Morno nada. Muito mais que isso. Quente de desatinar. Como os
cinemas, pela razoabilidade das entradas, permitissem a frequência de qualquer cristão, o santista não titubeava. Ia passar duas horas num ambiente fresco. De ar gostosamente refrigerado. Duas horas? Duas horas nada. Muito mais que isso. Duas
sessões inteiras. Completas. O programa, no caso, era o que menos interessava.
Pois foi numa dessas noites, num dos cinemas do Gonzaga, que, mal iniciado o filme italiano, o sistema de refrigeração pifou. Traiçoeiramente. o zunido distante de colmeia continuou, por uns tempos, a chegar aos ouvidos da plateia deliciada. Mas o
ar fresco não. A sala foi ficando abafada. O ar, tão pesado, que arriava os ombros.
Inconscientemente pelo menos, todos devem ter sentido a diferença. Mas ninguém reclamou. Nem gemeu. Nem bufou. Havia, em cada cena, tanta água a tomar da grande concha da "Fontana de Trevi", tanta água a espirrar da fonte das Náiades, tantos
esguichos murmurantes, tanto véu formado por gotas microscópicas, que a imaginação do público aquecido se ensopava com a frescura da água romana.
"Não sei por que Santos também não tem, espalhada por todo lado, tanta água como Roma. Reparou que nem sentimos calor?" Esse foi o comentário inteligente de uma senhora de ombros transpirados.
Minha senhora. De pleno acordo. Mas, que artistas fariam obras tão belas? Capazes de maravilhar-nos os olhos? Que água poríamos a esguichar de nossas fontes?
Bem. A água poderia ser sempre a mesma. Espirrada, recaptada e pressionada por um motor. Havendo água a dar impressão de frescor, não exigiríamos que ela molhasse a figura impressionante de Netuno. Qualquer vasca, qualquer laguinho, qualquer
concha, um insosso quadrado até, uma feia boca de sapo, serviria como reservatório escachoante. Como bico de mangueira. Pra que muito luxo pra quem ainda não aprendeu sequer a respeitar uma humilde fonte luminosa?
Sim. Cidade quente deveria ter água com fartura. Não apenas nas torneiras. Mas a jorrar nas ruas. Nos jardins. Nas praças. Em cada esquina arredondada. Seu murmúrio repousante e fresco deveria unir-se à grande voz do mar. Do mar da praia. Aí sim,
embora sentindo calor, poderíamos iludir-nos com a frescura do líquido branco. Mas quem diz? Quantas fontes tem Santos? Quantos tanques? Quantos lagos pequeninos? Quantas cascatas sussurrantes? Quantos esguichos cantadores?
É certo que, ultimamente, um pouco mais de água tem sido espalhada pelos jardins. Mas ai! É tão pouca ainda para tanto calor. Pra tanta secura.
Mas o milagre aconteceu. De repente, de um para outro dia, centenas de fontes surgiram no Gonzaga. No Macuco. No Boqueirão. No Marapé. Brotaram espontaneamente nos centros das ruas. De cem em cem metros, há um repuxozinho encantador na sua
simplicidade. As fontes são os tampões da galeria de esgoto. Não agradam aos olhos. Muito menos ao nariz. Não era assim que queríamos, não.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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