GENTE E COISAS DA CIDADE Anjo ou diabo?
Lydia Federici
Na última crônica de 62, de um 62 que foi o maior ano do futebol brasileiro, esta homenagem ao grande campeão do seu
melhor clube.
Que o novo 1963, não podendo, logicamente, ser melhor, nos traga a todos as mesmas alegrias futebolísticas deste 62 que se vai.
***
O portão da frente do Parque do Marapé, o porteiro gastava os lábios secos. A dizer "não" repetidos às mães das crianças que iam homenagear os campeões do Santos. Se os filhos iam ter essa alegria,
por que não elas? Era justo aquilo? Justo ou não, a festa era só para os campeões e para as crianças. Não adiantava insistir. ordens eram ordens.
E por ordens serem ordens, nunca vi tanta gente grande ficar mais aborrecida. Nem mais chateada. Nem mais desiludida. Tampouco, mais justamente ofendida.
No galpão, as crianças agitavam-se. Com indocilidade. Embora professoras e serventes insistissem em grudá-las aos bancos e cadeirinhas, sempre havia alguns pares de pernas a fugir até as janelas. Quando os campeões do Santos, surgidos de carros que
entravam silenciosamente pelos fundos, apareceram, a meninada espichou o pescoço. Ficou, elétrica, a aguardar a entrada dos seus ídolos no galpão todo embandeirado.
Enquanto as palmas infantis traduzem alegria, admiração, entusiasmo por cada campeão que passa, sorridente e comovido, pela porta, um deles é agarrado, ainda lá fora, por uma menina. Ela lhe segura a mão escura. Encosta a cabeça nas calças azul
marinho. Ali fica. Tão mansamente feliz que a gente chega a ver o que é felicidade. E o rapaz não se mexe. Sabe o que representa essa ternura. Ele também não fez isso, quando criança? É coração a sentir coisa boa. A cantar amor silencioso. A
procurar calor.
Um nenê loirinho, com o uniforme do Santos, vai para o colo do rapaz. Ele o segura com carinhoso cuidado. Aninha-o bem. Com simplicidade. Sem pose alguma. Quando alguém comenta a linda criança que ele arranjou, ele sorri um grande sorriso todo
branco. Responde mansamente: "Quem sou eu..." Só isso.
Ao entrar no galpão, por último, a tempestade de palmas aumenta. O campeão senta-se numa cadeirinha baixa. Encarapita no colo um garoto do Parque. Seu afilhado. Quieto, calmo, todo ele distendido, relaxado, criança grande no meio das outras
crianças, ri gostoso ao ouvir o canto da meninada. Parecia menino de grupo recebendo elogio. Não da professora. Dos próprios companheiros.
"O feitiço do Pelé
Tá na bola ou tá no pé".
Para todas aquelas crianças, o Pelé parecia tão bom e tão bonito quanto um anjo. Mais que isso. Era como Deus. Por que razão, então, o Lobinho, na sua exposição de caricaturas, apresenta o moleque
Pelé como se fora um diabo arteiro? Ah! Aí é que está. Com uma bola entre os pés, Pelé é diabo. Os adversários que o digam.
Sem bola, é um pequeno grande Pelé. Simples e bom como anjo. Como um pai.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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