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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 302)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 29 de dezembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Morador desta rua

Lydia Federici

A Epitácio Pessoa é rua extensa. Vai da Conselheiro Nébias até a Ponta da Praia. É tua quase toda editada. Com exceção de alguns trechos, ocupados por terrenos abandonados, onde se reúnem vagabundos, toda ela é avenida de gente boa. Tem seus moleques. Meninos bonitos. Mas as famílias, em geral, apreciam a visão de uma copa verde de árvore. E usam sua sombra enquanto esperam, na beira de uma calçada escaldante, o ônibus sempre demorado.

Daí a grita que se ergueu quando os jardineiros da Prefeitura meteram o serrote e o machado nas árvores frondosas que os moradores haviam visto crescer. Visto só não. Ajudado também. Com regas, adubação, estaqueamento e amarração.

Que bobagem era aquela? Quando tanto se falava na proteção dos arbustos e dos jardins, a própria Prefeitura se metia a arrancar árvores?

"Vou dar parte à Polícia", gritou, sonolento mas furioso, um velho acordado pelo tombar dos galhos. "A minha árvore é que não tiram". Só sossegou quando lhe explicaram que as árvores, com cupim, muito altas e esgalhadas, ofereciam perigo. Não vira aquela que tombara sobre uma casa, ali adiante, na última ventania? Só a promessa jurada do plantio de novas mudas, todas da mesma espécie, é que, por fim, lhe aplacou a ira.

De fato, pouco depois, "saboneteiras" de metro e meio de altura, muito fraquinhas ainda, foram enfileiradas nos dois passeios da avenida. Apesar da terra adubada e das regas diárias dos primeiros dias, as plantas abaixaram a pequenina cabeça verde. Tristes e desanimadas como elas só. Entristecendo e desanimando, também, os velhos moradores da rua. Pegariam? Não pegariam?

Pegaram. Com exceção de algumas, quebradas maldosamente na calada da noite, todas elas, um belo dia, carregaram-se de brotos mimosos. A rua, até então vazia no comprimento triste do seu cinza, pintalgou-se de manchas de um verde claro e vivo. Cheio de vida. De alegria.

Dois meses se passaram. As copas cor de esmeralda coloriam sempre mais a tristura opaca da rua. Alguns moradores no pequeno quadrado de terra à beira dos passeios, mal e mal sombreados pelas "saboneteiras", arrancaram o mato e plantaram arnica colorida, duras espadas de São Jorge.

Ai! foi só diante das casas desses moradores caprichosos que as árvores continuaram a vicejar. Todas as demais, de um para outro dia, tombaram a cabeça. Amarelaram. Dobraram a ponta do tronco fino e adeus.

Que fora? Que não fora? A rua discutiu. Lembrou-se. Chegou a uma conclusão. O herbicida que um esborrifador da Prefeitura espalhara sobre o mato das sarjetas, sobre os canteiros praguejados das árvores, queimara as tenras raízes das "saboneteiras".

Ontem, na Epitácio Pessoa, começaram a substituição das mudas que mãos destruidoras ou herbicida assassino haviam maldosa ou inadvertidamente sacrificado. Em cada esquina da avenida há uma tabuleta grande e colorida. Diz assim: "Morador desta rua. Estas árvores estão sendo plantadas em seu benefício. Preservá-las e cuidá-las é seu dever".

Dever? Para os moradores da Epitácio Pessoa isso não é dever. É uma honra. Garanto-lhes.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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