GENTE E COISAS DA CIDADE Visão de Natal
Lydia Federici
Cego ele não era. Nem surdo. Mais do que lógico, portanto, que, embora sem preocupar-se grandemente, as coisas de Natal
lhe entrassem pelos olhos. Pelos ouvidos. Não eram impressões de um dia. Desde o começo de dezembro via o Natal comercializado. Nas vitrinas das lojas. Nas fachadas das casas de negócios. Espantara-se até ao ver, no saguão de um banco, uma árvore
prateada. Refletindo, nas bolas coloridas, pilhas de cheques. Montanhas de notas.
O Papai Noel de seus sonhos de criança aparecia, suarento, a cada cem passos. Lembrando bondade? Não. Indicando portas de lojas. Mostrando balcões de brinquedos.
Na praia, na cidade, milhares de luzes lembravam a alegria do Natal. E havia festões. Árvores bizarras. Folhas prateadas. Galhos retorcidos. Fitas e cordões. Presépios com cangurus. Tudo carregado de luz. Tanta luz, tanta prata, tanto ouro, que até
machucava os olhos.
E havia, gritado nos rádios, mostrado nas televisões, revelado pelos amplificadores, canções de Natal. Convites às compras. Sugestões de presentes. O próprio Deus-Menino dizia que os presentes da casa Corisco agradariam mais.
E havia o Natal guloso. O Natal comilão. O Natal com castanhas e nozes. Com leitões rosados. Com pálidos perus peitudos.
E havia gente suja que estendia a mão a pessoas que passavam apressadas. Com os braços carregados de embrulhos e pacotes. Todos servindo-se do Natal.
Não. Cego ele não era. Surdo também não. As coisas do Natal eram vistas e ouvidas há quase um mês. Era um Natal que lhe empurravam a muque. Tentando comovê-lo. Mas nisso tudo, onde se escondia o verdadeiro espírito do Natal? Não conseguia
encontrá-lo. Nem em sua própria casa. Nas noites tranquilas. A televisão, atoamente ligada, ajudando a iluminar, com sua luz azulada, as mãos que faziam estrelas. Que armavam presépios. Que enfeitavam árvores de Natal. Enquanto, se não dos
corações, pelo menos dos lábios escorriam comentários frívolos. Comparações desrespeitosas.
Foi justamente na véspera que isso lhe aconteceu. Ele saíra de casa para livrar-se do alvoroço que vinha da cozinha. Misturado ao cheiro dos temperos gostosos. Saiu para a noite. Menos abafada e trepidante lá fora. Pôs-se a andar. Rua abaixo. Vendo
árvores iluminadas nos quadros das janelas brancas. Ouvindo, abafados, rádios que continuavam a cantar o Natal. Canções suaves que risos entrecortavam. Que conversas agudas interrompiam.
De repente, parou. Viu numa porta larga, de vidro leitoso, três silhuetas que, curvas sobre o dorso de camelos, caminhavam para Belém. Os rostos, levantados para um cometa que lhes indicava o caminho, mostravam, no cansaço da viagem, a esperança do
encontro prometido.
A doçura da luz, a força das imagens escuras, a paz daquele canto de rua fizeram-no, finalmente, sentir o espírito do Natal. Juntou as mãos e, pela primeira vez, conseguiu orar.
***
Quem quiser ver o quadro, fica na esquina do Canal 4 com Vitor de Lamare.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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