GENTE E COISAS DA CIDADE Bairro Feliz
Lydia Federici
A Sociedade Amigos do Bairro reuniu-se. Na verdade, nem havia necessidade de uma reunião especial. Que os Amigos estão
sempre juntos. Encontram-se todas as noites. Na última quadra da rua iluminada a neon. Fazem ponto na livraria. Onde folheiam livros. No bar. Onde acabam a noite tomando café.
Para dar um cunho oficial às resoluções, foi preparada a reunião. Convocados todos os membros da diretoria. Resolveram, então, oficialmente, o que já estava mais do que decidido, estudado e planejado.
E assim sai a notícia. A Sociedade faria o Natal dos pobres do bairro. Distribuindo alimentos às famílias que se inscrevessem. Dando brinquedos e balas às crianças. Ao mesmo tempo em que abria as inscrições para os necessitados, convidava o
comércio e os moradores do bairro a colaborarem na campanha.
Ora. Culpem os santistas de tudo que quiserem. Mas de falta de caridade não. A gente do bairro não podia ser exceção. Donativos constituíram uma chuva meio inverno, meio verão. Persistente, durável, como chuvisqueiro de frio. Pródiga e farta como
aguaceiro de calor. Durante dias, eram coisas e mais coisas a chegar. Não desmentiram a regra os moradores do bairro. Nem moradores, nem comerciantes, Deus que os abençoe.
Se o depósito improvisado foi ficando abarrotado, o mesmo não aconteceu com a lista de inscritos. Se o primeiro estufava, a segunda estava uma miséria. Nem vinte inscrições foram feitas. E dessas, quase todas eram de gente de outras zonas. O que
contrariava, frontalmente, as resoluções tomadas.
Os Amigos coçavam a cabeça. Será que no bairro não havia gente que precisasse de auxílio? Mormente nesta época de aperturas? Num Natal tão absurdamente caro quanto o deste ano?
A alegria de constatar essa autossuficiência era, entretanto, anuviada por um problema muito sério. A pilha de donativos continuava a crescer. Dia e noite. E, verificadas as inscrições, deduzidas as irregularidades, feitas as sindicâncias, apenas
duas famílias residentes no bairro necessitavam realmente de algo que lhes melhorasse o Natal. E daí? Que fazer com a doçura do açúcar, o ouro do macarrão, a brancura do leite em pó? Com as roupas? Os sapatos? Os brinquedos todos?
Os Amigos, atrapalhados, consultaram-se. Surgiu a ideia salvadora. Se o bairro não tinha pobres, contava, porém, dentro de seus limites, com três casas de caridade. Foi assim que a Casa de Estar, o Educandário Santista, a Escola Maria Imaculada,
receberam, para suas crianças, mais alguns presentes de Natal.
***
Nas vésperas de Natal, a gente sonha. Deseja coisas. Faz pedidos.
Que, num fim de ano muito próximo, todos os bairros de Santos sejam como o Boqueirão. Bairro feliz. Bairro que não teve pobres a quem auxiliar. Do fundo do coração, que assim seja, meu Deus.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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