GENTE E COISAS DA CIDADE As compras de dona Alice
Lydia Federici
Fazia tempo que dona Alice acariciava, intimamente, aquela ideia. Chegara mesmo, com certa timidez, a externá-la à
filha e ao genro. Não apenas uma vez. Em diversas ocasiões.
"Neste Natal, Deus ajudando, meus presentes quem vai comprar sou eu mesma".
O problema era o reumatismo. As pernas inchadas. Mas Deus, ajudando, com um pouco de dieta e de vitaminas, chegaria ao mês de dezembro em condições de ir ver as vitrinas da cidade. De escolher, ela própria, o que queria dar aos netos, aos filhos,
aos genros e noras. Às velhas amigas, muito poucas, infelizmente, que ainda viviam. Querendo-lhe bem.
Assim, um belo dia, dona Alice, antes de descer para o café, resolveu que as pernas estavam bem. E, toda ela, muito bem disposta. Vestiu o taier da missa. Espantando a família ao aparecer na copa com a sua elegância. Com sua alegria. E,
principalmente, com o ar maroto. Coisa rara nela.
"É hoje. Você vem comigo, não vem, querida?" A filha não se lembrava mais. É claro que dona Alice já a havia avisado. Há muito tempo. Mas não pensou que fosse a sério. Era mesmo? Tinha que ser naquela manhã?
Desistiu da feira. Deu ordens à cozinheira. Ameaçou a criançada. pediu ao marido que lhe deixasse o carro. De forma discreta, pediu-lhe também que lhe adiantasse umas notas. Aproveitaria, explicou, para fazer algumas de suas compras. Na verdade,
pensava em reforçar o maço de notas escondido na bolsa preta de sua mãe. Quanto teria ela? Recebendo tão pouco de sua pensão?
"Ora. Há mais de cinco meses que estou economizando, minha filha. Você não reparou como tenho sido mão fechada?"
Saíram. No carro, dona Alice ajeitou os óculos de ler. Tirou, da bolsa, um pedaço de papel. Onde fizera a lista de seus presentes. Foi lendo, para a filha, o que pretendia comprar. Assim ela já saberia por onde tinha que passar. Porque, de lojas,
ela já não entendia mais nada. Fazia tanto tempo que não saía. Tirando os óculos, ajeitou os fios de cabelo que lhe escapavam da cuiazinha preta enterrada na cabeça. Ficou, feliz, a sorrir para tudo que passava pelo carro.
Começaram por uma joalheria da D. Pedro. Dona Alice queria comprar uma correntinha de ouro para a última neta. Neta, não. Bisneta.
Firmando-se no braço da filha, a velhinha chegou a cabeça junto ao vidro grosso. Com os olhos maravilhados percorria as joias faiscantes. Encontrou o que queria. Era um mimo. De trança bem delicada. Ouro 18.
"E não está cara", falou toda satisfeita. "Duzentos e oitenta é um bom preço, você não acha?"
A filha acompanhou-lhe a direção do dedo enluvado. "Duzentos e oitenta, não, mamãe. Você pulou um zero. É de dois mil e oitocentos!"
***
Dona Alice voltou triste da cidade. Para ela, tudo tinha um zero a mais.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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