GENTE E COISAS DA CIDADE Pintor
Lydia Federici
Na ânsia de céu, na falta de chão, os homens os fazem altos. Cada vez mais. Empilham andares e mais andares. Que são
casas sobre casas. Antes eram bangalôs. Sobrados. Um belo sobradão, se passasse dos dois andares. Hoje são esses arranha-céus. Que, se não arranham o céu, pelo menos, em certos dias, fazem cócegas nas nuvens brancas. De neblina. Que passam a
correr.
Os operários constroem-nos encobertos por tapumes. Na hora do revestimento, balançam-se nos andaimes flutuantes. Móveis como elevadores. Que sobem e descem à vontade do freguês. São plataformas grandes. Bem assoalhadas. Protegidas, por lei, por
balaustres também fechados. Na prática, defendidas apenas por um estreito corrimão. E olhe lá. Mas enfim. O pedreiro que tome tento. Nada de muita alegria lá por cima.
Esses mesmos andaimes servem aos pintores. Que os usam com a mesma despreocupada sem-cerimônia dos amigos pedreiros.
E eis o prédio pronto. Por fora, todos eles, ou quase todos, bonitos, grandes, claros. Limpos e perfumados como bebê recém banhado.
Depois, na fachada brilhante, bate o sol. Descorando-a. E vem o vento. Empurrando, até o último andar, a poeira gordurosa de chaminés de fábricas. De escapamento de carros. A fuligem vomitada pelas largas chaminés coloridas dos navios também acaba
indo sossegar nas saliências das paredes. Quando vem a chuva, se for das grossas, bem demorada, a sujeira sai. Se for garoa, água e pó se misturam. Escorre a lama, lentamente, rebordo abaixo. E assim a natureza dá a sua demão de pintura nos prédios
da cidade. Mas a tinta não é clara nem bonita. Muito menos de cor alegre. Chega o dia, afinal, em que todos os condôminos entram num acordo. É. Não há escapatória. Limpe-se o prédio. Assim como está é que não pode ficar.
Ah! Meus amigos. Se seus nervos não estiverem perfeitos, nunca se atrevam a olhar para um arranha-céu que toma seu banho de limpeza. Por quê? Ora. Por nada. Apenas para evitar uma crise. Conto-lhes como se torna a dar beleza às paredes envelhecidas
pela sujeira.
Por medida de economia, não se fazem andaimes. Desce-se, apenas, uma corda grossa. |Cheia de nós. Faz-se um balanço com um pedaço de madeira. Tábua de caixote serve. Nesse balanço, senta-se o pintor. Como um cinto de segurança lhe atrapalharia os
movimentos, ele não o usa. Segura-se, com uma das mãos, à corda. Com a outra, vai brochando. De cima, um companheiro desce-lhe a lata de tinta. Para não pintar apenas uma faixa estreita, com os pés apoiados na parede ele amplia o seu raio de ação.
Levando o banco mais para a direita. Ou para a esquerda. Começa sempre de cima, evidentemente. Fica todo o dia assim dependurado sobre a rua. Pequenina, lá embaixo.
Deus. Será que um pedaço de pão vale tanto?
Ou será que a vida de um homem vale tão pouco?

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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