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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 293)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 18 de dezembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Pintor

Lydia Federici

Na ânsia de céu, na falta de chão, os homens os fazem altos. Cada vez mais. Empilham andares e mais andares. Que são casas sobre casas. Antes eram bangalôs. Sobrados. Um belo sobradão, se passasse dos dois andares. Hoje são esses arranha-céus. Que, se não arranham o céu, pelo menos, em certos dias, fazem cócegas nas nuvens brancas. De neblina. Que passam a correr.

Os operários constroem-nos encobertos por tapumes. Na hora do revestimento, balançam-se nos andaimes flutuantes. Móveis como elevadores. Que sobem e descem à vontade do freguês. São plataformas grandes. Bem assoalhadas. Protegidas, por lei, por balaustres também fechados. Na prática, defendidas apenas por um estreito corrimão. E olhe lá. Mas enfim. O pedreiro que tome tento. Nada de muita alegria lá por cima.

Esses mesmos andaimes servem aos pintores. Que os usam com a mesma despreocupada sem-cerimônia dos amigos pedreiros.

E eis o prédio pronto. Por fora, todos eles, ou quase todos, bonitos, grandes, claros. Limpos e perfumados como bebê recém banhado.

Depois, na fachada brilhante, bate o sol. Descorando-a. E vem o vento. Empurrando, até o último andar, a poeira gordurosa de chaminés de fábricas. De escapamento de carros. A fuligem vomitada pelas largas chaminés coloridas dos navios também acaba indo sossegar nas saliências das paredes. Quando vem a chuva, se for das grossas, bem demorada, a sujeira sai. Se for garoa, água e pó se misturam. Escorre a lama, lentamente, rebordo abaixo. E assim a natureza dá a sua demão de pintura nos prédios da cidade. Mas a tinta não é clara nem bonita. Muito menos de cor alegre. Chega o dia, afinal, em que todos os condôminos entram num acordo. É. Não há escapatória. Limpe-se o prédio. Assim como está é que não pode ficar.

Ah! Meus amigos. Se seus nervos não estiverem perfeitos, nunca se atrevam a olhar para um arranha-céu que toma seu banho de limpeza. Por quê? Ora. Por nada. Apenas para evitar uma crise. Conto-lhes como se torna a dar beleza às paredes envelhecidas pela sujeira.

Por medida de economia, não se fazem andaimes. Desce-se, apenas, uma corda grossa. |Cheia de nós. Faz-se um balanço com um pedaço de madeira. Tábua de caixote serve. Nesse balanço, senta-se o pintor. Como um cinto de segurança lhe atrapalharia os movimentos, ele não o usa. Segura-se, com uma das mãos, à corda. Com a outra, vai brochando. De cima, um companheiro desce-lhe a lata de tinta. Para não pintar apenas uma faixa estreita, com os pés apoiados na parede ele amplia o seu raio de ação. Levando o banco mais para a direita. Ou para a esquerda. Começa sempre de cima, evidentemente. Fica todo o dia assim dependurado sobre a rua. Pequenina, lá embaixo.

Deus. Será que um pedaço de pão vale tanto?

Ou será que a vida de um homem vale tão pouco?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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