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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 290)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 14 de dezembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Soldado da Força Pública

Lydia Federici

Praça é que se diz, não? Pouco importa. O povo conhece-os como soldados. E soldados, carinhosamente, eles ficam sendo.

***

A mulher estava sentada num banco dos jardins da praia. Do lado da avenida. Era uma mulher triste. Pálida. Desbotada. Sentada no banco, era a figura do desalento. Sintetizava bem o cansaço de uma vida triste. Estava só. As mãos largadas sobre o colo. Era uma pequena mancha parda no brilho da manhã cheia de sol.

Seus olhos pequenos, apertados, descobriram o casal de velhos. Estavam os dois do outro lado da avenida. Diante do prédio de apartamentos. Queriam, sem dúvida, atravessar a rua. Carros, passando constantemente, na corrida, grudavam-nos, indecisos, à beira da calçada. Eram bem idosos. Ele, magro e curvado. Fingindo amparar mas, na verdade, pendurando sua fraqueza no braço gordo da velhinha redonda como uma pipa.

Pela primeira vez, naquela manhã, a mulher triste sentiu interesse por alguma coisa. Até então só cismara. À toa. remoendo, passivamente, seus desencantos. Agora, não. Só queria ver como aqueles dois trapos ambulantes atravessariam a pista de corida. Teriam coragem? Seria divertido vê-los correr. Aprumou-se um pouco no banco. Sorria um meio sorriso mau. A desgraça alheia era só o que ainda, na vida desgraçada, a fazia gozar.

Sua ânsia curiosa não foi satisfeita. De um lado qualquer apareceu um guarda de capacete branco. Plantou-se, com calma no meio da rua. Levantou o braço. Deu um apito curto. Os carros pararam. Os dois velhos, ele, trôpego; ela, pesada, quase rodando sobre os pés inchados, atravessaram a primeira pista. Subiram, a custo, o meio fio do canteiro central. O soldado já passara para a segunda pista. E fazia, o danado, coisa que nunca vira soldado fazer. Enquanto erguia uma das mãos, paralisando o trânsito, com a outra ajudava o velho a arrastar-se. A subir, ofegante, no passeio do jardim.

"Que 'Dio' te pague, moço. Que 'Dio' também te ajude", repetia a velha gorda, tirando uns cabelos dos olhos. Sorrindo, para o guarda, um grande sorriso de dentadura.

"Ei, meu chapa. Vai me atravessar?" E o garoto, cheio de areia, depois de limpar a mão em três dedos de maiô, enfiou, com confiança, o polegar na mão morena do soldado de capacete branco. Ambos riam. Bem na frente da cara desiludida da mulher triste. A confiança de um, o ar protetor do outro, fizeram-lhe mal. Fechou os olhos. Com raiva. Engolindo amargo, não pôde, entretanto, deixar de pensar. Pensar que se, no seu tempo, os soldados da Força Pública fossem assim, ela não seria o que tinha sido. O que era.

***

Sim. Mudou muito a sempre gloriosa Força Pública. Seus homens, hoje, são amigos. Amigos cheios de humanidade. Não apenas soldados.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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