GENTE E COISAS DA CIDADE Despertar
Lydia Federici
Acordou com a luminosidade que inundava o quarto. A veneziana era das antigas. De ripas largas. Bem separadas. Devia
estar fazendo sol. E que sol, para assim clarear o quarto. Pulou da cama. Enquanto enfiava as chinelas, juntou, na frente, toda a roda da camisola comprida. Caminhou até a janela. Com cuidado, Que as pernas ainda estavam meio emperradas.
O brilho do jardim, que via através das folhas abertas da veneziana, inundou-lhe, de alegria, o peito magro. Cruzou as mãos, largando as dobras da camisola. Virou-se para a cama.
"Õ Lopes. Acorda, homem. Vem ver que dia". Mal gritara, arrependeu-se. Bem podia ter deixado o marido a dormir. Mas não. Não com aquele sol todo. Vestiram-se os dois. Foram tomar café sobre a mesa da cozinha. O sol brincando-lhes nas cabeças
brancas. Felizes com a luz. Felizes com o calor.
***
A menina foi a primeira a acordar. Esfregou os olhos. Deu um chute nas cobertas. Não precisava de ir espiar para fora para saber que havia sol. Correu, direta, para a cama gradeada do irmãozinho.
"Corda Tutú. Tem sol. Vamos chamar papai. Vamos pra praia".
Foram os dois, descalços, para o quarto pegado. Só deixaram o pai tranquilo quando, de short, caminhavam os três, saltitantes, para a praia ensolarada.
***
A velhinha muito velha não esperou chegar à igreja para começar a rezar. Pela rua segurando as pontas do xale, os dedos nodosos iam correndo as contas grossas do terço. Rezava porque se sentia feliz.
O sol esquentava-lhe as costas curvas. Um pouco menos curvas naquela manhã de luz. Fora uma mancha dourada na parede do porão em que dormia que a acordara. Tampouco, só uma rodela de sol, alegrara-lhe o despertar. E deixava-a com aquela grata
sensação de alegria.
***
Todos, todos, no domingo de sol, sentiram-se mais leves. Menos velhos. Mais felizes. Só porque, ao despertar, uma luminosidade dourada lhes prometia mesmo no meio dos problemas não desaparecidos, um
pouco mais de calor e de alegria. Não fora o sol direto que os acordara. Apenas a sua luz fora suficiente para prometer-lhes coisas boas.
Só o velho Bastião, enrodilhado numa soleira larga, foi que acordou com o sol. Com o sol direto queimando-lhe as pálpebras sonolentas. E, ao que se saiba, foi só o velho vagabundo que teve a petulância de resmungar contra tanta beleza.
"Pra que tanta 'clareza'? Porcaria de sol". Virou o corpo. Com o chapéu cobriu os olhos.
Bastião. Bastião. Não xingue o sol. Cubra o rosto mas não xingue o sol. Não vê a alegria que ele põe em todo o mundo?
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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