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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 287)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 11 de dezembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Despertar

Lydia Federici

Acordou com a luminosidade que inundava o quarto. A veneziana era das antigas. De ripas largas. Bem separadas. Devia estar fazendo sol. E que sol, para assim clarear o quarto. Pulou da cama. Enquanto enfiava as chinelas, juntou, na frente, toda a roda da camisola comprida. Caminhou até a janela. Com cuidado, Que as pernas ainda estavam meio emperradas.

O brilho do jardim, que via através das folhas abertas da veneziana, inundou-lhe, de alegria, o peito magro. Cruzou as mãos, largando as dobras da camisola. Virou-se para a cama.

"Õ Lopes. Acorda, homem. Vem ver que dia". Mal gritara, arrependeu-se. Bem podia ter deixado o marido a dormir. Mas não. Não com aquele sol todo. Vestiram-se os dois. Foram tomar café sobre a mesa da cozinha. O sol brincando-lhes nas cabeças brancas. Felizes com a luz. Felizes com o calor.

***

A menina foi a primeira a acordar. Esfregou os olhos. Deu um chute nas cobertas. Não precisava de ir espiar para fora para saber que havia sol. Correu, direta, para a cama gradeada do irmãozinho.

"Corda Tutú. Tem sol. Vamos chamar papai. Vamos pra praia".

Foram os dois, descalços, para o quarto pegado. Só deixaram o pai tranquilo quando, de short, caminhavam os três, saltitantes, para a praia ensolarada.

***

A velhinha muito velha não esperou chegar à igreja para começar a rezar. Pela rua segurando as pontas do xale, os dedos nodosos iam correndo as contas grossas do terço. Rezava porque se sentia feliz. O sol esquentava-lhe as costas curvas. Um pouco menos curvas naquela manhã de luz. Fora uma mancha dourada na parede do porão em que dormia que a acordara. Tampouco, só uma rodela de sol, alegrara-lhe o despertar. E deixava-a com aquela grata sensação de alegria.

***

Todos, todos, no domingo de sol, sentiram-se mais leves. Menos velhos. Mais felizes. Só porque, ao despertar, uma luminosidade dourada lhes prometia mesmo no meio dos problemas não desaparecidos, um pouco mais de calor e de alegria. Não fora o sol direto que os acordara. Apenas a sua luz fora suficiente para prometer-lhes coisas boas.

Só o velho Bastião, enrodilhado numa soleira larga, foi que acordou com o sol. Com o sol direto queimando-lhe as pálpebras sonolentas. E, ao que se saiba, foi só o velho vagabundo que teve a petulância de resmungar contra tanta beleza.

"Pra que tanta 'clareza'? Porcaria de sol". Virou o corpo. Com o chapéu cobriu os olhos.

Bastião. Bastião. Não xingue o sol. Cubra o rosto mas não xingue o sol. Não vê a alegria que ele põe em todo o mundo?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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