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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 283)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
5 de dezembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Originalidade
Lydia Federici
Ele tinha o que faltava a ela. Ela era tudo o que ele não era. Encontraram-se um dia. Com encantamento perceberam que
formavam um par perfeito. Completo. Namoraram. Noivaram. Casaram. E eram felizes.
Beleza, meiguice, doçura? Era só olhar para ela. Força? Olhar-se ao espelho. Inteligência e saber? Ela admirava-os no rapaz tranquilo. Era só espicaçar-lhe a mente. Ter paciência de esperar um pouco. Que falar depressa, isso ele não sabia fazer.
Vivacidade e brilho, embora superficiais, eram qualidades dela.
Admiravam-se os amigos da felicidade tranquila do jovem par. Como podiam viver tão bem, se eram tão diferentes: Ninguém os entendia. Mas eles entendiam-se de forma perfeita. Total. Completa. E isso era o essencial.
Uma noite, casados há mais de um ano, tão felizes como nos tempos de noivado, surgiu a primeira dúvida. E foi grave. Doída. Porque, apesar da delicadeza com que ele falou, a verdade é que, no fundo, ela compreendeu que ele a chamava de burra.
Haviam voltado de uma festa. Em que ele, com toda sua gravidade, se reunira a amigos carregados de problemas sérios. Enquanto ela, farfalhante, espalhava sua alegre parolice em dois, três grupos, ao mesmo tempo. Chegados ao bangalô que fora dos
pais dela, ele puxara-lhe a cabeça perfumada contra o ombro forte.
"Escute, amor. Aquele exemplo dos gatinhos nascidos no forno é coisa ultra conhecida. Absolutamente sem originalidade. Por que, ao surgir a conversa, você, dessa cabecinha bonita, não tira outra forma, inédita, de exemplificar?"
Ela ergueu a cabeça. Arregalou os olhos. Passiva, deixou-o beijá-los. Enquanto sentia,no estômago, uma coisa muito esquisita. Vazia. E fria.
Nos dias seguintes, continuaram a ser o que sempre haviam sido. Ele não percebeu o gelo que continuava a machucar-lhe o coração ofendido. Mas ela, embora igual e sempre sorridente e alegre, complexara-se.
Um mês depois, no clube, chegando-se à roda divertida que ela, esfuziante, dominava, ouviu-a dizer:
"Se a gata, com toda poesia, resolveu fazer sua 'delivrance' nos galhos de uma velha mangueira, que são seus gatinhos? Passarinhos ou mangas?"
Incrível. Como podia ela inventar tais absurdos? Não tinha, mesmo, cabeça?
De volta, ainda no carro, ela perguntou-lhe, com um sorriso malicioso, que tal ele achara o novo exemplo. Não era original? Passou-lhe os braços pelo pescoço. Rindo. Toda triunfante. Ele ergueu os ombros. Com resignação. Por que ela citara coisa
tão improvável? Tão inverossímil? Tão forçada?
Quando entraram na garagem, antes dele fechar a porta, ela apontou-lhe a escada encostada à parede. Com voz autoritária, intimou-o: "Pegue isso aí. Traga aqui pra fora". Ele, meio atarantado, obedeceu. "Encoste no tronco da mangueira. Está bem
firme? Suba, agora. Veja o que está ali". Dois olhos brilhantes fitaram o rapaz apalermado. um ronronar amigo saudou seu apatetamento. Miados fraquinhos riram de seu espanto.
Se inverossimilhança havia, o absurdo não era dela. E sim da gata Matusquela.
Depois disso, ele aprendeu a respeitar o descoco feminino em geral. E o dela, em particular. Continuam a viver felizes. Sim senhor.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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