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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 282)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 4 de dezembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Casa de Estar

Lydia Federici

Visitei a Casa de Estar. Num dia da semana passada. Desde então, olhos infantis não param de olhar-me. Grandes. Enormes. E estupidamente vazios. Desde então, olhos de meninas que o mundo magoou não cessam, dia e noite, de olhar-me com humildade. Ou com ódio. Deus! Nada fiz de mal. E, agora, que vi tanta desgraça, sentir-me-ei culpada pelo resto da vida se, além de fazer um pouco de bem, não contar a amigos o que eles precisam saber. O que há dentro da Casa de Estar. Acho que é coisa que bem pouca gente sabe.

Antes de pôr-me a escrever, perguntei às senhoras que tentam melhorar as condições de vida daquele abrigo, se não se incomodariam que contasse o que vi. Seriam misérias. Frases pretas. Como também lhes perguntei se, conseguindo auxílio de alguém, elas se melindrariam em recebê-lo.

"Você não conseguiria, por mais que escrevesse, pintar com cor exata a desgraça que ali existe. Quanto a auxílio, seja o que for, em que tempo for, Deus pague a quem nos ajudar".

***

A Casa de Estar é uma casa velha. E pequena. O refeitório fica no meio do terreno. Só tem teto. Paredes laterais, não. Um galpão cimentado, térreo, nos fundos, está dividido em três dormitórios. São 40 camas. De colchões sempre molhados. Onde, à noite, dormem de 70 a 80 entes humanos quanto você, meu amigo. Ou eu.

A Casa de Estar, lotados os asilos, as creches, a Gota de Leite, recebe crianças que os pais abandonaram. Definitivamente ou momentaneamente. Crianças que o Juizado de Menores tirou da tutela de pais irresponsáveis. Ou incapazes. Ou doentes. Meninas que, ainda na idade de brincar com bonecas, tiveram bonecas de verdade. Bonecas humanas. Filhos, sim, meu amigo. Mocinhas atiradas à vida. Da vida só conhecendo o lado miserável. Doloroso. Interesseiro. Negativo.

Tudo isso, amontoado, vive, às vezes de passagem apenas, na Casa de Estar. É uma mistura de doença, de taras,d e vícios, de tristeza e de miséria como em nenhum outro lugar felizmente existe. Porque, num asilo, não se aceitam crianças portadoras de moléstias contagiosas. E, na Casa de Estar, sim. Ali são tratadas por médicos caridosos. Recebem, dentro do possível, muito do pouco que se lhe pode dar. Apesar do auxílio do Estado. E da dedicação da nossa gente boa. Sim. É fora de dúvida que a Casa de Estar faz milagres. Auxiliada, de várias formas, pela Santa Casa. Por médicos. Por cinco funcionárias abnegadas. Por um grupo de senhoras de Santos. Mas a desgraça é tanta que isso não chega.

Sabe quem dá banho, no tanque de lavar roupa, nos meninos e menininhas? Uma abrigada de boa índole. E, 50 crianças sarnentas, sifilíticas, com feridas que não cicatrizam, são enxugadas na mesma e única toalha vermelha. Pois se não há outra. As mais velhas débeis mentais, viciadas, revoltadas, espatifam, quebram, inutilizam, rasgam e depredam tudo.

A Casa de Estar está angariando fundos para a construção de uma sede nova. Para que esse luxo? Não é luxo. Vá ver a casa velha da Conselheiro Nébias, 759. Nem morto você ficaria num daqueles dormitórios.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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