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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 273)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 23 de novembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Estela, a carta e o carro

Lydia Federici

Estela, como moça, não podia ser exceção. Só havia um carro em casa, mais do que lógico que o guiasse. Só havia um problema. Sua idade. Assim, quando Estela fez 18 anos, seu melhor presente, o mais desejado, foi esta autorização. Dada com um beijo emocionado de sua mãe.

"Matricule-se numa autoescola. Tire sua carta. E guie".

Com 18 anos e um dia, Estela correu para uma autoescola vizinha. Combinou tudo. Inclusive a primeira aula para aquela própria tarde. Esperara tanto que não iria ser tola de perder mais um dia sequer.

Assim, naquela tarde, com o coração batendo-lhe na garganta, a moça ouviu as primeiras explicações. Teve a primeira aula prática. A excitação afinava-lhe a voz. Os olhos claros arregalavam-se para tudo. Como era maravilhoso! Cansou as costas de tanto espichar-se no banco do 'volks'. Ficou coçando as mãos finas. Espantada de ver, na palma, junto aos dedos, umas bolhas d'água que zombavam de seu esforço.

Como queria aprender logo, sua aplicação, em poucas aulas, fê-la ficar dona dos segredos da choferagem. Quando se sentava atrás do volante e punha o motor a funcionar, o caro, obediente, parecia conhecê-la. Ronronava baixinho a cada mudança de marcha. Sem estrilar. Na hora de sair, os pneus desencostavam do meio fio com toda a graça. O 'volks' avançava de manso. Agradecendo-lhe a gentileza com que, bem de leve, os pés miúdos tratavam os pedais.

Assim, com poucas horas de aula, Estela ficou pronta para prestar exame. Ainda não havia automatizado os movimentos. Ainda não se sentia senhora dos pequeninos truques de um chofer experimentado. Mas, que diabo, se o instrutor achava que ela passaria direta pelas provas todas, por que não sentir confiança? E ir, de cabeça erguida, para o suadouro final da Delegacia? Foi o que fez. Ou o que procurou fazer. Empinou a cabeça loura. Tentou não sentir as pancadas do coração que, esquisito, lhe batia desde a ponta dos pés até o alto da cabeça. Também não se distraiu com o suor que lhe pingava, outra coisa esquisita, da ponta do nariz. Concentrou-se, total e integralmente, nos problemas do exame. Na parte teórica, que sabia de trás para diante. E na parte prática. Que não lhe ofereceu nenhuma dificuldade.

Fez um exame perfeito. Aprovada, com cumprimentos, e tudo. Era motorista amadora. Uff! Que alegria.

Com a carta provisória na mão, correu para casa. Para contar a grande novidade à mãe. Ela havia saído. De carro. Oh! O que penou, até ouvir, na rua, a buzinada da velha 'Fiat'. Chegada finalmente a mãe, Estela pegou o carro. Tinha que mostrar-lhe sua habilidade. O que aconteceu Estela não conta. Suponho que a Fiat não quis tomar conhecimento dos dizeres da carta de habilitação da moça. Só sei que, quando os amigos lhe perguntaram por que não guia, Estela, com os olhos fuzilantes, a voz fina, diz apenas isto:

"Estou esperando mamãe mudar de carro".

E muda logo de conversa.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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