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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 269)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 18 de novembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Um cego 'vendo' orquídeas

Lydia Federici

Faz tempo que isto aconteceu. Anos.

Na estufa do Orquidário não havia grande afluência de visitantes. Não sei por qual razão. Que sempre, graças a Deus, houve muita gene interessada em admirar esses pequeninos e coloridos milagres da natureza. Talvez a hora fosse de calmaria. Ou o dia de muito trabalho. Ou simples coincidência. O fato é que havia pouca gente. Parava-se, à vontade, diante de qualquer exemplar. Avançava-se livremente. Podia-se, até, retornar sobre os passos. Andar em zigue-zague. Sem atropelar nem incomodar ninguém.

Talvez devido ao pequeno número de pessoas, a estufa tinha quase que um silêncio de igreja. Havia recolhimento. Calma e paz. Uma ou outra exclamação, incontrolável, saía em tom abafado. Com jeito de oração.

O hábito de ver exposições, ano após ano, torna-nos meio insensíveis. Olha-se, com distração, para as centenas de "Laelia". Só um exemplar realmente exagerado na perfeição da forma e do colorido é que ainda nos consegue pôr um arrepio na espinha. Dar-nos um apertão no coração. Assim estava eu naquela tarde. Gostando, indubitavelmente. Mas sem sentir aquele mistério de luz criado na sombra. Sem vibrar. Tudo era bonito. Mas arquivisto.

Avançando com certa pressa, parei ao lado de um senhor de idade. Dando-lhe o braço, estava uma moça. Dessas que falam sem parar. Já havia reparado na sua loquacidade. De perto, o murmúrio transformava-se em voz discreta. Aveludada. Influência, com certeza,d a delicadeza leve, leve, que a rodeava.

"...premiada. Laelia Purpurata. De Lia Varela. É grande. As pétalas têm o comprimento de seus dedos, vovô. Um pouco maiores. São mais brancas que o leite. Não. Mais ainda. Ainda como a neve. Como a neve deve ser. São cinco. Esparramadas. no centro, uma flor entre o vermelho e o roxo. Em forma de copo de leite. Linda. Muito pura".

Não pude deixar de sorrir. Por que, no seu desejo de falar, ela não flava de ouras coisas? Não é muita pretensão tentar descrever uma flor? Nem bem acabara de pensar mal da loquacidade da moça, percebi, com um soco no estômago, que o senhor usava uma bengala de ponteira branca. Um cego! um cego que fora ver, pelos olhos alheios, a beleza daquelas flores.

Encolhi-me. Fui para um canto. De longe, fiquei olhando o cego. Ele ouvia as explicações. Com um sorriso, visualizava as descrições. Nos momentos de silêncio, ele punha a cabeça de lado. Que ouvia? O esmigalhar das pedrinhas do chão? O pingar da água? Suas narinas dilatavam-se. Via-lhe o peito encher-se-lhe de ar. Ele aspirava o ar. Sim. Senti, pela primeira vez, o perfume das orquídeas. Como se elas, em geral, não são perfumadas? Não sei. Mas havia perfume ali. Suavemente adocicado. Uma fragrância muito tênue. E havia cheiro de umidade. Frescor de mata. Cheiro de sombra. Mistério de natureza. Invisível. Mas perfeitamente sensível.

Foi um cego que me ensinou a ver orquídeas. Um cego, sim senhor. Deus o abençoe.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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