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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 268)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 17 de novembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Mal comparando

Lydia Federici

Há gente de boa memória. Há gente de memória frouxa. A pergunta vale para os lembradores. E para os que se esquecem de quase tudo.

Quem, por aqui, se lembrava de como era um dia de sol? De sol de verão? De um sol imenso a brilhar num céu sem nuvens? De um sol a esquentar até costas abrigadas? A derreter asfalto? A encher, de luz dourada, uma sala que a gente teima, sem resultado, em escurecer com persianas e cortinas?

Qual a memória privilegiada capaz de recordar toda a beleza de um dia inteiro de sol? Sem vento frio. Arrepiante. Sem ameaça de chuva?

Dia 15, 15 de novembro, foi assim. O primeiro dia de sol real e plenamente glorioso. Tivemos, desde que o inverno começou a castigar esta ilha, o primeiro dia em que, já descrentes, quase desesperançados, voltamos a saber que gosto gostoso tinha o verão.

O curioso da história é que, em outros anos, um dia de sol quente, a cozinhar estudantes em desfile, poderia ser muito bonito. Muito alegre. Enfeitador. Mas como era mal recebido. Como, dele, nos queixávamos. Aos olhos franzidos pela luz, juntávamos o franzir de bocas a resmungar. Gemiam as mães de família. Unindo seu lamento à choramingação dos guris de pele brotoejada. Bufavam os colegiais. Lamentava-se, irrequieto, todo o povo. Impacientavam-se, no palanque coberto, as autoridades. Olhava-se para o céu. Com raiva. Todos. Sem exceção. Não para admirar-lhe o azul bonito. Apenas procurando atrair o avanço de uma nuvem de sombra refrescante.

A fartura de dias ensolarados, quentes, luminosos, obrigava-nos a desejar para os desfiles, céu encoberto. Vento fresco. Se viesse mais sol, ao inferno com ele.

Neste último dia 15, quem,. meu amigo, quem se lembrou de, como anteriormente, resmungar, gemer, bufar, detestar, imprecar, impacientar-se, excomungar ou praguejar? Quem lamentou a radiosa alegria do dia quente e ensolarado? Alguém se queixou do sol ardente? Ou levantou reparo contra o céu totalmente azul? Livre, até o horizonte, de nuvens? De meros fiapos de nuvem? Alguém pensou, sequer, em condenar o ouro brilhante do ar?

Não. Houve desfile de colegiais. Houve mar e houve praia. Houve ruas sem sombra. Janelas abafadas. O sol queimou peles claras e morenas. Fez olhos lacrimejarem. Avermelhou narizes. Molhou a roupa de todo mundo. Quem reclamou?

Lembro-me de quando Santos tinha casas, só casas, e urubus. Um mundo de urubus. Lembro-me de como os urubus se enfileiravam nas cumeeiras dos telhados. Era só aparecer, depois de uma boa chuvarada, um pequeno e morno solzinho e lá estavam eles. Com as negras asas estendidas. As penas a secar.

Deus. Mal comparando, todos nós, no dia do desfile em homenagem à data da Proclamação da República, parecíamos urubus entanguidos e molhados. A secar. A esquentar. Com que doida alegria estendemos os braços, abrimos a alma, à luz e ao calor que, afinal, o céu, quase no fim do ano, nos ofertou com magnanimidade tardia.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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