GENTE E COISAS DA CIDADE Dora e o sol
Lydia Federici
Não sei. Mas lá no Nordeste, acho que eles devem espantar a seca falando de chuva. De água. E aqui? Com este fartão de
chuva? Afogados em água? Pois. É agarrar a imaginar o sol. Que sol, agora, de verdade, esquentando lá no céu, ai!, nunca mais.
Qual o sol mais bonito que já vi? Sei lá. Qualquer solzinho, mesmo o fraco, o de minuto, é coisa bonita. Qual a mais bonita imagem de sol que me ficou na memória? Também não sei. Há tantas. Mas não. Como pude achar que há tantas? A mais bonita, sem
dúvida alguma, é a do sol de Dora.
Dora veio do Rio. Direta da praia de Copacabana. Trouxe, cobrindo-lhe a pele clara, o moreno dourado do sol carioca. Não pensei que, quebrando onda verde de Copacabana, ela quisesse experimentar a mansidão do mar de Santos. Mas quis. Foi, depois
dos cumprimentos efusivos, a primeira coisa que pediu.
"A que horas vais à praia?" perguntou, de noite, mal e mal chegada.
Bem. Como estava por conta da visita, podia ser à hora que Dora quisesse. Dora quis que fosse cedo. Gostava de praia. De qualquer praia. Vivia, a bem dizer, namorando o mar. Namoro íntimo. Apaixonado. Desses que não se largam.
O dia seguinte foi mais um de uma longa série de dias ensolarados. Desses que, ai! ai!, tínhamos com tanta fartura que daria para espalhar sobre todo o mundo. Lembram-se? Fomos cedo à praia. Ela, na frente, quase a correr. E correu mesmo depois de
atravessar a avenida. Tinha pressa de chegar à praia.
Não quis esteira nem toalha. Muito luxo. Gostava de sentar-se na areia. para sentir, em todo o corpo, a carícia dos grãos dourados. "Tão finos estes daqui", admirou-se.
Durante uma hora, a conversar distraidamente, não fez outra coisa senão correr os olhos pelo mar. E a brincar com a areia fofa. Desenhando riscos com os calcanhares nus. Riscando desenhos mais complicados com a ponta dos dedos das mãos queimadas.
Conversávamos, sim. Eu com ela. Ela comigo. Mas principalmente, sentia-o eu de sobejo, conversava ela, em silêncio, com o sol, com a areia, com o mar.
De repente, estirou os braços. Estendeu os olhos para o azul do céu. Pareceu-me que lhe parecia nunca haver visto tanto azul. Azul puro. Limpo. Nitidamente azul. Azul de céu lavado. Azul de primavera. Profundo. Tão sem fim que o mergulho na sua
profundidade chegava a tontear. Foi aí que, de um pulo, pôs-se de pé. Espalhando areia. Fiquei cega. Só lhe ouvia a voz a trautear uma louca valsa vienense. Que se ia afastando.
Quando pude enxergar, Dora estava longe. Na areia molhada. Mais firme. Dançava como uma bailarina que a glória do dia tivesse enlouquecido. O corpo, brilhante de óleo, era um reflexo cambiante de
raios dourados. A alegria com que rodopiava era a alegria quente e radiosa de um dia de sol. Toda sua dança era uma dança de sol. Uma exaltação à beleza do sol. Um hino ao sol.
***
Você, meu amigo, está interessado em conhecer Dora? Valeria a pena. Apesar dela ter 65 anos. E de cinco, desde então, se terem passado. Acho que ela ainda dança a sua dança de ouro. Havendo sol,
claro.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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