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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 263)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 10 de novembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Dora e o sol

Lydia Federici

Não sei. Mas lá no Nordeste, acho que eles devem espantar a seca falando de chuva. De água. E aqui? Com este fartão de chuva? Afogados em água? Pois. É agarrar a imaginar o sol. Que sol, agora, de verdade, esquentando lá no céu, ai!, nunca mais.

Qual o sol mais bonito que já vi? Sei lá. Qualquer solzinho, mesmo o fraco, o de minuto, é coisa bonita. Qual a mais bonita imagem de sol que me ficou na memória? Também não sei. Há tantas. Mas não. Como pude achar que há tantas? A mais bonita, sem dúvida alguma, é a do sol de Dora.

Dora veio do Rio. Direta da praia de Copacabana. Trouxe, cobrindo-lhe a pele clara, o moreno dourado do sol carioca. Não pensei que, quebrando onda verde de Copacabana, ela quisesse experimentar a mansidão do mar de Santos. Mas quis. Foi, depois dos cumprimentos efusivos, a primeira coisa que pediu.

"A que horas vais à praia?" perguntou, de noite, mal e mal chegada.

Bem. Como estava por conta da visita, podia ser à hora que Dora quisesse. Dora quis que fosse cedo. Gostava de praia. De qualquer praia. Vivia, a bem dizer, namorando o mar. Namoro íntimo. Apaixonado. Desses que não se largam.

O dia seguinte foi mais um de uma longa série de dias ensolarados. Desses que, ai! ai!, tínhamos com tanta fartura que daria para espalhar sobre todo o mundo. Lembram-se? Fomos cedo à praia. Ela, na frente, quase a correr. E correu mesmo depois de atravessar a avenida. Tinha pressa de chegar à praia.

Não quis esteira nem toalha. Muito luxo. Gostava de sentar-se na areia. para sentir, em todo o corpo, a carícia dos grãos dourados. "Tão finos estes daqui", admirou-se.

Durante uma hora, a conversar distraidamente, não fez outra coisa senão correr os olhos pelo mar. E a brincar com a areia fofa. Desenhando riscos com os calcanhares nus. Riscando desenhos mais complicados com a ponta dos dedos das mãos queimadas. Conversávamos, sim. Eu com ela. Ela comigo. Mas principalmente, sentia-o eu de sobejo, conversava ela, em silêncio, com o sol, com a areia, com o mar.

De repente, estirou os braços. Estendeu os olhos para o azul do céu. Pareceu-me que lhe parecia nunca haver visto tanto azul. Azul puro. Limpo. Nitidamente azul. Azul de céu lavado. Azul de primavera. Profundo. Tão sem fim que o mergulho na sua profundidade chegava a tontear. Foi aí que, de um pulo, pôs-se de pé. Espalhando areia. Fiquei cega. Só lhe ouvia a voz a trautear uma louca valsa vienense. Que se ia afastando.

Quando pude enxergar, Dora estava longe. Na areia molhada. Mais firme. Dançava como uma bailarina que a glória do dia tivesse enlouquecido. O corpo, brilhante de óleo, era um reflexo cambiante de raios dourados. A alegria com que rodopiava era a alegria quente e radiosa de um dia de sol. Toda sua dança era uma dança de sol. Uma exaltação à beleza do sol. Um hino ao sol.

***

Você, meu amigo, está interessado em conhecer Dora? Valeria a pena. Apesar dela ter 65 anos. E de cinco, desde então, se terem passado. Acho que ela ainda dança a sua dança de ouro. Havendo sol, claro.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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