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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 260)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 7 de novembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Vidro, não!

Lydia Federici

Quem foi à praia, nestes últimos dias, viu. E, se ver, foi tudo o que aconteceu, considerem-se, meus amigos, muito felizes. Porque houve aqueles que, não tendo podido ver, não conseguiram fugir à sujeira da praia. Nem a muito pior que, inocentemente, boiava sobre a água. Um óleo escuro. Mal cheiroso. Pegajoso. Nojento mesmo.

Aqueles que, não indo à praia, não viram nem tiveram a má sorte de sujar-se, souberam, entretanto, da lixaria que ornamentou a beira do mar. Fotografias nítidas documentaram o sossegado banho de sol de milhares de detritos atirados à areia cinzenta de nossas praias.

Repisar o quanto isso é desagradável seria bobagem. Todos nós sabemos a grande diferença que existe entre um banho de mar tomado com prazer. Em água limpa. De espuma branca. E aquele em que levamos todo o tempo a fugir de sujeira que boia. Como também sabemos que um pedaço de areia limpa é muito mais convidativo que outro carregado de restos de tudo quanto é coisa.

Infelizmente, nas praias, encontrar essa sujeira não é o pior que pode acontecer-nos aos olhos. Ou à pele. O pior é algo que, traiçoeiramente, se esconde, sob a areia seca e fofa. Algo que não vemos. E de que, por mais que arregalemos os olhos, só chegamos a tomar conhecimento quando a coisa já aconteceu.

No primeiro dia desta última série de feriados que tivemos, logo de manhã, mal o mormaço começara a esquentar o ar, um pai, com um garoto no colo, saiu a correr, da praia. O garotinha berrava com toda a força de seus pulmões. E não podia ser de outra forma. Do pezinho, que o pai, nervoso, segurava, pingava sangue sem parar. um talho feio. No calcanhar.

Horas depois, a quinhentos metros dali, numa farmácia do Boqueirão, um menino de seus 10 anos, acompanhado por toda a família - pai, mãe, tia e três irmãos -, estendia, pálido, o pé, para um curativo de emergência. Na planta do pé, uma meia lua sangrenta. Que fora? Pois na praia. Um pedaço de vidro atirado na areia.

Como é que vidro vai parar na praia? Arrojado pelo vai-e-vem do mar? Não. Largado ali por gente distraída. Há moças e senhoras que levam o vidro de óleo à praia. Há um mundo de gente que carrega bebidas até lá. Quebrar um vidro, uma garrafa, não é coisa impossível de acontecer. Quebrou? Que azar. O óleo bronzeador está tão caro. A cerveja estava tão gostosa. Azar mesmo. Mas que fazer? Aconteceu, paciência. E quem, no seu aborrecimento momentâneo, se lembra de recolher os cacos? Eles ali ficam. A areia encobre-os.

A areia encobre-os até o minuto em que um pé descalço, a correr, a pular, os encontra. E então acontecem os acidentes de consequências imprevisíveis.

Ninguém gosta de sujeira. Toleramo-la, entretanto, com esta santa paciência que Deus nos deu. Mas caco de vidro na praia, não é demais?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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