GENTE E COISAS DA CIDADE Vidro, não!
Lydia Federici
Quem foi à praia, nestes últimos dias, viu. E, se ver, foi tudo o que aconteceu, considerem-se, meus amigos, muito
felizes. Porque houve aqueles que, não tendo podido ver, não conseguiram fugir à sujeira da praia. Nem a muito pior que, inocentemente, boiava sobre a água. Um óleo escuro. Mal cheiroso. Pegajoso. Nojento mesmo.
Aqueles que, não indo à praia, não viram nem tiveram a má sorte de sujar-se, souberam, entretanto, da lixaria que ornamentou a beira do mar. Fotografias nítidas documentaram o sossegado banho de sol de milhares de detritos atirados à areia cinzenta
de nossas praias.
Repisar o quanto isso é desagradável seria bobagem. Todos nós sabemos a grande diferença que existe entre um banho de mar tomado com prazer. Em água limpa. De espuma branca. E aquele em que levamos todo o tempo a fugir de sujeira que boia. Como
também sabemos que um pedaço de areia limpa é muito mais convidativo que outro carregado de restos de tudo quanto é coisa.
Infelizmente, nas praias, encontrar essa sujeira não é o pior que pode acontecer-nos aos olhos. Ou à pele. O pior é algo que, traiçoeiramente, se esconde, sob a areia seca e fofa. Algo que não vemos. E de que, por mais que arregalemos os olhos, só
chegamos a tomar conhecimento quando a coisa já aconteceu.
No primeiro dia desta última série de feriados que tivemos, logo de manhã, mal o mormaço começara a esquentar o ar, um pai, com um garoto no colo, saiu a correr, da praia. O garotinha berrava com toda a força de seus pulmões. E não podia ser de
outra forma. Do pezinho, que o pai, nervoso, segurava, pingava sangue sem parar. um talho feio. No calcanhar.
Horas depois, a quinhentos metros dali, numa farmácia do Boqueirão, um menino de seus 10 anos, acompanhado por toda a família - pai, mãe, tia e três irmãos -, estendia, pálido, o pé, para um curativo de emergência. Na planta do pé, uma meia lua
sangrenta. Que fora? Pois na praia. Um pedaço de vidro atirado na areia.
Como é que vidro vai parar na praia? Arrojado pelo vai-e-vem do mar? Não. Largado ali por gente distraída. Há moças e senhoras que levam o vidro de óleo à praia. Há um mundo de gente que carrega bebidas até lá. Quebrar um vidro, uma garrafa, não é
coisa impossível de acontecer. Quebrou? Que azar. O óleo bronzeador está tão caro. A cerveja estava tão gostosa. Azar mesmo. Mas que fazer? Aconteceu, paciência. E quem, no seu aborrecimento momentâneo, se lembra de recolher os cacos? Eles ali
ficam. A areia encobre-os.
A areia encobre-os até o minuto em que um pé descalço, a correr, a pular, os encontra. E então acontecem os acidentes de consequências imprevisíveis.
Ninguém gosta de sujeira. Toleramo-la, entretanto, com esta santa paciência que Deus nos deu. Mas caco de vidro na praia, não é demais?

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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