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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 259)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 6 de novembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

"Eles, os famintos"

Lydia Federici

Não adianta. É assim mesmo. Ninguém vai conseguir modificar esse estado de coisas. Não é falta de educação, não. Não é egoísmo. Não é estabanação. É apenas fome. Fome de praia. Fome de mar. Fome que só pode ser saciada em quatro dias. Se o for. Mas nunca o é. E, portanto, toca aproveitar os quatro dias feriados. Toca a correr. Outros domingos virão. Outra série de feriados também. Mas quem garante que, nesses outros dias, eles possam descer? E ter sol na praia? E ter mar? Por isso, é aproveitar. Aproveitar ao máximo.

Ora. Nós, santistas, estamos aqui. Aqui vivemos. O mar é nosso em qualquer minuto do dia, da madrugada, da noitinha, em que cismarmos de lá ir dar um mergulho. A praia? Tão nossa quanto o que mais o seja. Sempre à disposição de nossos olhos. De nossas pernas caminheiras. Do primeiro ao último dia de cada ano. Como compreender essa fúria dos visitantes? Essa fome apressada? Essa correria constante que nossa calma de donos não consegue compreender?

Daí o danarmo-nos quando eles levam a noite a berrar no apartamento vizinho. Quando nos acotovelam nos corredores. Quando passam sobre nossas pernas na praia. Sem sequer, de longe, resmungar algo que, pelo menos, nos dê a impressão de um pedido de desculpas.

Pensemos um pouco. Espremidos em dois cômodos, dez mulheres em quatro beliches no quarto, doze homens num sofá-cama da sala, como dormir? É claro que levem a noite a brincar, a atirar coisas, a cantar, a conversar. E, assim que a veneziana começa a clarear, como impedi-los que saiam daquele ensardinhamento? E que se ponham a correr, rumo ao ar livre? E puro? E, se eles correm para desintoxicar-se, como exigir que andem com calma elegância? Se não correrem, caem duros. Envenenados. Então não vemos que estão quase asfixiados? Que precisam de ar?

Como pretender, também, que façam suas compras indispensáveis com jeito calmo e pacato? Em Campos do Jordão, com um cavalo á nossa espera, perderíamos nós um minuto de tempo em gentilezas? Não agarraríamos o pão, mesmo sem embrulhar, não atiraríamos a nota sobre o balcão e... adeus! O cavalo me espera?" É a mesma coisa. Aqui, a praia os espera. o mar os chama. Com urgência. É sair na corrida para agarrá-los.

E, nas ruas, nos bondes, nos bares,na praia, como exigir que tenham olhos para as nossas pobres figuras espremidas, se os olhos que têm no rosto avermelhado são poucos, ai!, para mostrar-lhes o mar com tanta água? A praia com tanta areia?

Sim. Danamo-nos com eles, os famintos. Como eles, os famintos das nossas belezas e de todas essas gostosuras, se danam conosco. Que os olhamos sem compreender-lhes a fome de sol, de horizonte de mar.

Não. Não adianta. Será sempre assim. Será sempre assim enquanto, aqui, houver mar. Enquanto houver gente que nunca viu o mar. Ou que dele não se farta.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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