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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 255)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 31 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Ema gulosa

Lydia Federici

Ema é nome de mulher. Nome bonito, por sinal. Curto. Simples. Bastante sonoro. Mas não é de uma Ema, menina, moça ou mulher feita, que vamos falar. A ema da história é ema com "e" minúsculo. É ema bicho. Um pássaro. Pássaro grande. Dono de um complexo de grandeza que o faz crescer até a altura de dois metros. Sabem agora o que é?

Essa ema, originária das planícies australianas, meteu-se a correr mundo. Por gosto. Ou a muque. Não sei bem. O caso é que veio parar aqui em Santos. Num jardim de casa particular. Cujo dono gosta de pássaros. De pássaros livres. Não engaiolados. Nem enjaulados. Muito menos escondidos atrás de muros altos. Desse seu gosto compartilham todos os que quiserem ver as pequeninas maravilhas que coleciona. É só chegar até o muro da casa da praia. Enfiar os olhos pelos semicírculos da parede. E pronto. É ver beleza empenada, extravagante na forma, caprichosa na cor, como se estivéssemos na divisão de aves de um Jardim Zoológico.

Pois muito bem. Quando a ema pisou na sua nova casa, sacudindo o corpanzil gigante, faisões, garças e marrecos olharam para cima. E, judiciosamente, com essa argúcia que os homens não têm, abriram-lhe espaço. Loucos é que não eram. Com o passar do tempo, porém, perderam esse respeito medroso. A ema era de paz. Comia. Dava as suas corridinhas para manter a forma. E, no resto do tempo, ficava, muito quieta, a tomar sol. Não se incomodava com a vida de ninguém. Era,na verdade, uma grande filósofa.

Se os amigos emplumados compreenderam o modo de viver da ema, deixando-a em sossego, o mesmo não aconteceu com os amigos implumes. Esses, ao descobrirem a galinha gigantesca, arregalavam os olhos. Arregalavam-nos e coçavam-nos. Era de verdade ou de mentira? Se era de verdade, por que não se mexia? Ora. Não se mexia porque não era de mexer-se. Preferia ficar quieta.

Uma manhã, obrigado pelos filhos que queriam ver os pássaros, um pai paciente parou o carro diante da casa. A ema ali estava. Logo junto ao muro. Grande de meter medo.

"É bicho de verdade?" Claro que era. "Então faz 'ele' se mexer". O pai conversou. Bateu palmas. Assobiou. A ema nem piscou. Continuou a olhar um ponto qualquer do espaço. Então o pai teve uma inspiração. Sacudiu o molho de chaves na frente daquela carantonha sonhadora. Talvez o entrechocar metálico sacudisse a inércia do bicho. Foi o que aconteceu. A ema, como um raio, estendeu o pescoço. Pai e crianças só perceberam o que sucederam quando viram a ema chupar a corrente do chaveiro. Assim como a gente chupa um fio de espaguete. As chaves já deviam estar no seu estômago. E agora?

O pai tocou a campainha. Vermelho de raiva. precisava das chaves. Ora. Quem o mandara oferecê-las ao bicho? E ele sabia que aquela peste era assim gulosa? Dias depois, foi uma moça que queria de volta a sua carteirinha. Que a ema gulosa também engolira. Por causa dessas e de outras, a ema teve que sair da cidade. Está, agora, no Zoológico de Curitiba.

Azar ou sorte nossa? Depende do ponto de vista, parece-me.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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