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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 249)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
24 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Gente feliz
Lydia Federici
Ruth é que é feliz. Ruth e gente como ela. Por quê? Por uma razão muito simples. Aprenderam a viver. Sem espernear ante
o inevitável. Conto-lhes um fato capaz de ilustrar essa tranquila felicidade.
Aconteceu na semana passada. Quando as sapateiras, pelos bicos dos calçados, gotejavam água. Quando capas não chegavam secar. Quando guarda-chuvas, postos a escorrer, à noite, tornavam a entrar em ação, no dia seguinte, ainda gotejantes. Quando
carros, mesmo os diariamente flanelados, viviam esborrifados de lama. Quando bacias regurgitavam de roupa fervida. Quando, em sapataria alguma da cidade, mesmo implorando, não se conseguia arranjar um pé sequer de galocha. Nem dois números acima,
nem um número abaixo do pretendido. Quando, enfim, em poucas palavras, chovia seguidamente. Sem parar. Lembram-se? Lembram-se daquele desespero?
Tudo que é exagerado traz uma espécie de desatino. De desequilíbrio. Mormente quando o exagero provém de coisa desagradável. Como é o caso da chuva. Pouca e rápida, vá lá. Mas seis dias a fio? Vá chover assim no inferno!
Foi nesse estado de ânimo, mandando chuva e família para o reino de Belzebu, que ela saiu de casa. Trancara as crianças num quarto, de pijama. Avisou a mãe que iria dar uma volta. Para arejar. Para mudar de ambiente. Pra não se tornar uma
assassina, talvez. E deu meia volta. Rumo à porta do living. Quase gritou quando, na copa, uma camisolinha úmida, espremida entre outras peças, num varal improvisado, lhe raspou a testa ardente.
Na rua, apesar do guarda-chuva, a garoa rodopiante esfriou-lhe o rosto. Não adiantava tombar o guarda-chuva para a frente. Ou para os lados. Garoa não tem direção fixa. É inimigo que ataca em todas as frentes. Ao mesmo tempo.
"Olá. Passeando?" Era a vizinha do lado, tentando abrir o portão. Tinha ido comprar mais uma caixa de fraldas. Apontou o terraço da frente, envidraçado. Parecia terreiro de São João. Todo embandeirado de branco. "Já viu fraldaria maior? Meu neto
não toma conhecimento da chuva. Já nem sei onde pendurar roupa". Riram as duas. Desanimadas. Ambas com vontade de chorar.
E ela continuou a andar. Quando passou pela casa da amiga, lembrou-se que tinha vontade de lhe ver o rosto sorridente. Os olhos calmos. Entrou. Bateu na porta de vidro. Esperou. Tornou a bater. Ruth apareceu. Com seu sorriso gostoso acentuando a
tranquilidade satisfeita dos olhos. Só de vê-la já fazia bem à alma. Era um banho de paz. Ao beijarem-se, Ruth pôs as mãos para os lados. Estavam molhadas. Ligeiramente ensaboadas.
"Entre. Eu estava lavando uns vestidinhos das bonecas. Venha".
"Vestidinhos destas duas 'bonecas'?, perguntou, apontando para as meninas que brincavam na sala. Não. Eram vestidos das bonecas das 'bonecas' mesmo. Estavam tão sujinhos., Mas molhar mais roupa com aquele tempo? E pra secar? Ora. tanto fazia. Peça
a mais. Peça a menos.
Deus! Ruth é que sabe viver. Não se preocupa com o inevitável.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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