GENTE E COISAS DA CIDADE O muro
Lydia Federici
Antes de ir à exposição eu pensava: "que haverá de novo? Já vimos documentários. Jornais e revistas fartam-se de
publicar fotos. Conhecemos a história toda. Pra que rever, rememorar tudo isso?"
Acontece, porém, que a exposição está sendo realizada em Santos. Vista por milhares de olhos. Comentada, com tristeza, por centenas de bocas. Bocas que gaguejam a estupefação sentida por centenas de corações.
E então, resolvi ir. Para poder sentir, de uma vez só, agrupados num pequeno espaço, flagrantes da vida de um muro que divide uma cidade. Indo, pelo caminho, eu pensava: "Berlim está longe. Não conheço aquela cidade. Nem ninguém de seu povo. Sinto
pena, sim. Mas não posso imaginar como seja aquela vida. Está tudo, felizmente, tão longe de nós!" E é assim mesmo. Exatamente assim que se manifesta o egoísmo da distância. Lamentamos o que sucede em Berlim. Mas isso, embora aflorando-nos o
coração, não nos chega a doer na pele. Está longe. Muito longe.
E, de repente, ali, na esquina da João Pessoa com a Riachuelo, na antiga loja dos "quatro e quatrocentos", logo na entrada da exposição, surge um grande quadro com o mapa de Santos. No alto, uma reprodução fotográfica do trabalho do cais. E uma
foto tranquila das praias tranquilas. Cais e praias. Trabalho vigoroso e rico. Lazer vagabundo. Ensolarado ou fluorescente. Livre. Nosso. Orgulhosamente nosso! Mas, ao lado, num painel branco, letras pretas traçam um muro. Um muro hipotético a
dividir a nossa cidade. A separar-nos dos amigos. A limitar-nos os passos. A aprisionar-nos. A amarrar-nos. A prender-nos dentro de uma rua. Essa visão de um muro imaginário, local, assusta-nos. Indigna-nos. Revolta-nos. Faz-nos sofrer. Seria
possível isso? Aqui? Conosco?
Sentindo, então, de perto, a limitação do muro, começamos a andar. E a ver fotografias. São fotos de Berlim. Com praças, ruas e casas de Berlim. De uma Berlim, entretanto, que já não está tão distante. Um velho, numa janela eriçada de arame
farpado, não é um velho alemão desconhecido. É um velho que nos olha daqui mesmo. Tão de perto que nos emocionamos. E a criança loira que enfia a mãozinha por um buraco do muro, à procura sabe lá Deus de quem, é como uma de nossas crianças. E a
noiva que, com um binóculo, procura, do outro lado, ver a mãe mandando-lhe um beijo, abençoando-a, é uma moça igual às noivas felizes que se casam no Embaré ou na Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Só que estas têm a família toda, livre,
rodeando-a. E a de lá...
Não. Não consegui ver o resto do muro. Isso bastou-me bem. Saí pelas ruas enlameadas da cidade. Andei por onde quis. Inclusive pelas pedras britadas da João Pessoa. Torcendo o pé. Estragando sapatos. Que importava? A rua é minha. Ando por onde
quero. Falo, de tudo, com todos. Isso é liberdade. Liberdade como nunca senti.
Vá lá ver a exposição, minha amiga. Para saber o bom que ainda temos. O bem de que ainda podemos gozar. Vá lá ver. E pense no que viu!

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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