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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 243)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 17 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Cecília

Lydia Federici

Quantas seriam? Noventa, cem? Cento e vinte? Na hora, contei. Era fácil fazê-lo. Estavam perfeitamente alinhadas. Era só contar quantas de frente. Quantas de lado. Multiplicar. E pronto. Sei que, na hora, fiz o cálculo. Mas agora é que não me lembro de quantas eram. Na verdade, o total exato, exato, também não importa. Interessa apenas dizer que era um belo e numeroso grupo de garotas.

Ver uma era ver todas. Pois todas tinham duas pernas e dois braços nus. Um saiote de palmo e meio. Com pregas iguais de dois centímetros. Um corpete liso. Debruado, nas cavas e no decote, de prata. De prata era o cinto estreito. A tira dos cabelos. Ah! Aí estava a única diferença. Nos cabelos. Cada cabeça era de uma cor. Em geral, castanha. Mas ruiva também. E preta. E loira. Mas, fora essa discordância colorida, todas elas eram centimetricamente iguais. E movimentavam-se de forma geometricamente idêntica. Tão igualmente perfeitas na aparência e nos movimentos que a gente tinha a impressão de estar vendo truques de Hollywood.

Foi no ginásio do Internacional que isso estava acontecendo. Num dos anos, não muito distantes, em que havia, em Santos, os campeonatos de ginástica. A turma que se apresentava, naquela noite, era a do Colégio Canadá. Um espetáculo vigoroso de beleza. Ritmo. E graça.

O público, mal iniciados os movimentos do primeiro exercício, prendeu a respiração. E só se percebeu com que maravilhado enlevo ele devorava aquela perfeição quando, terminado o exercício, o ginásio estrondeou com as palmas. Apresentavam-se supertreinadas as garotas da professora Iolanda. Firmes. Seguras. Altivas na sua confiança. A flexão das cabeças obedecia, em todas, incrivelmente, ao mesmo grau ensaiado. Uma demonstração perfeita. De arrepiar.

Foi no segundo exercício que descobri a loirinha. Como a descobri não sei. Pois havia uma mãe aflita, ao lado, que, no meio daquela igualdade toda, não conseguia achar a sua menina. Descobri e me fixei na garota de cabelos claros pela forma de executar os movimentos. Era, entre as cem, a única diferente. A única que se mexia de forma desigual. Não que perdesse o tempo. Não que elevasse um pouco mais os braços estendidos. Não que flexionasse menos, ou mais, a cabecinha loira. Fazia exatamente o que as colegas faziam. Em cima, como elas todas, do mesmo acorde de piano. Mas era diferente. Totalmente diferente. Não era, como as outras, uma ginástica muscular. Era um sopro. Um espírito. Algo pousado na terra mas a voar entre nuvens. Com gestos de anjo. Enquanto as outras nos mostravam o vigor gracioso dos músculos disciplinados, ela demonstrava, na carinha branca e nos braços de algodão, a dança eterna de uma ginástica toda sonho e fluidez.

"Quem é a quarta da oitava fila?"

Iolanda Baldia olhou. "Você percebeu? Não houve jeito de fazê-la executar como as outras. É Cecília Botto. Estuda balé".

É. Cecília é bailarina. Nasceu pra isso. Como outros nascem para outras coisas. Cecília é bailarina. Só Deus lhe tirará o que lhe deu.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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