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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 239)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 12 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Uma criança

Lydia Federici

Hoje é o dia da criança. A ternura de todo dia, hoje, será mais profunda. Como isso será possível, todos nós ignoramos. Mas que vai acontecer, vai.

Trago, para a crônica de hoje, uma criança. Não a puxo, gentilmente, pela mão. Ela não me permitiria essa intimidade. Por uma razão muito simples. Não foi habituada a ter a mão de ninguém apoiando-a. Acarinhando-a. Empurrando-a. Ou puxando-a. Bichinho de mato, então? Não sei bem.

Nasceu no único barraco de uma zona de casas ricas. Tinha mãe. Uma mulata nova e bonita. Que vivia a rir. Pelo menos quando o visitava. Quem dele cuidou, e de mais meia dúzia de crianças morenas, foi a avó. Doente. Enfezada. Resmungona e briguenta.

Tinha pai também. Parece que um moço bonito. E suficientemente rico para ter um carro. Como os outros que, às vezes, vinham conversar ou sair com sua mãe. Quando ela tinha tempo de vir vê-lo.

"É esse, mãe?", perguntava, os dois pés fincados no chão, os olhos correndo, esperançosos, pela lataria brilhante do automóvel parado logo ali na esquina. Ela ria. Balançava a cabeça, numa negativa. Mandava-o para dentro e saía. Com o tempo, essa curiosidade passou. Aprendeu a ser feliz com o que tinha.

Que tinha ele? Uma avó que lhe empurrava um prato de comida. Uns companheiros sujos e chorões de quem fugia. A mãe mais bonita e cheirosa do mundo. Alegre. E que sempre lhe trazia roupa. Uma bola que os outros furavam. À noite, no quintal, quando ele já estava, empilhado com os outros, na cama estreita, sempre havia alguém tocando violão. Uma vez por semana, a roda era grande. Cheia de música. De bate-pé. Com cheiro de arruda que sempre o fazia dormir. Por mais que ele quisesse ficar acordado. Para ouvir a dança. As brigas que, às vezes, começavam.

Conheci-o quando ele tinha cinco anos. Com calças muito justas e curtas, seguras por suspensórios azuis, ele, na calçada, chutava uma pedrinha. Mas não era um futebolista. Era todo um bailarino de passos ritmados. Com os braços erguidos, tamborilava uma caixa de fósforos. E cantarolava, em surdina. Diminuí os passos para seguir-lhe o espetáculo. Deus! Que bailarino estava ali. A misturar futebol com samba. Tão puro um quanto o outro.

Quando ele me descobriu, parou. Foi como se algo de excepcional tivesse acabado. Olhou-me nos olhos. Sem medo. Sem vergonha. Sem sorrir. Só na expectativa de que eu me fosse embora. Vi-lhe o corpo esguio. A cabeça saindo de um colarinho ajustado. Com orgulho. Altivez. Segurança. Olhava-me de baixo. Mas não era de baixo que vinha aquele olhar tranquilo, sereno, seguro. Era um olhar onde havia independência. Todo um mundo de força. A gozar o pouco que o mundo lhe dera.

***

Vi milhares de crianças. De todas as idades. Ricas e pobres. Sadias e aleijadas. Via-as a rir e a chorar. A brincar e a dormir. Com os olhinhos vagos entreabrindo-se par a vida. E os olhos de anjo fechados para sempre. Vi sorrisos e lágrimas infantis. Artes, manhas e truques. Mas, fechando os olhos, vejo só a criança que me mostrou o que é ser feliz.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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