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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 238)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
11 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Inveja
Lydia Federici
"Hoje, o Sérgio estava brincando com um trem, cheio de 'vagão', que andava sozinho. Tinha trilho, estação e tudo. A
máquina não apitava. Mas acendia o farol".
Era sempre assim. Quando o garoto voltava, antes mesmo de derrubar, junto ao tanque, a trouxa de roupa que lhe afundava a cabeça entre os ombros magros, já começava a contar o que vira na rua de casas bonitas. Não pedia para a mãe que lhe comprasse
a bola dos campeões. Ou uma garagem cheia de automóveis. Nem mesmo uma bolinha colorida de gude. Sabia, de tanto ouvir falar, que isso era brinquedo de menino rico. Ele, que desse graças a Deus, por ter um cabo de vassoura com uma rodinha na ponta.
E comida no prato. E uma cama onde dormir com o irmão mais velho. E calças e camisa para vestir.
Não! O garoto não pedia nada. Nos dias em que ia buscar ou entregar a roupa que a mãe lavava, ele, parado no meio da rua, de longe, ficava vendo os outros meninos brincarem. Brincava com as mãos dos outros. Com os pés alheios. E isso lhe bastava.
Mas, chegando em casa, não podia deixar de contar as novidades. Falava com voz incolor. Isenta de desejo. Mas, vez ou outra, passava uma chispa pelos seus olhos tristes. Não adiantava pedir. Mas bem que ele gostaria de ser como os meninos daquela
rua. Ter o que eles tinham. Brincar com as coisas com que eles brincavam.
Uma tarde, Sérgio, o dono do trem elétrico, que brincava sozinho na calçada, descobriu o garoto pobre do outro lado da rua. Firmou os pés nos pedais do jipe, fazendo as rodas derraparem sobre os ladrilhos. Riu com a brecada instantânea e, ainda a
rir, com a mão, fez um aceno para o entregador de roupa.
"Hei, magriço, vem cá!" O outro, a princípio, encolheu-se contra o muro. Mas criou coragem diante de nova chamada e atravessou a rua. "Você não quer brincar um pouco? Estou cansado de pedalar. Me dá uma empurrada".
O garoto arrumou a roupa sobre o muro. Limpou as mãos nas calças. Empurrou o jipe. Para cima e para baixo. Sempre de olho na trouxa equilibrada sobre a parede. Em dez minutos ficavam amigos. Sérgio deixou o Toninho andar de jipe. Ensinou-o a
pedalar. Empurrou-o quando o outro bobeava, a olhar os pés desajeitados.
Naquele dia, o moleque chegou tarde em casa. Contou sua aventura. Não com voz apagada. Mas vibrante de alegria. Estava tão entusiasmado que ficou taramelando sem parar. Insensivelmente derivou para a queixa. Falando, com inveja, do que o Sérgio
tinha. Por que ele não podia ter também aqueles brinquedos? Ser como os outros?
Durante um mês, a mãe ouviu-lhe a queixa revoltada. Ele brincava no quintal, insatisfeito e irado. E, de repente, tudo passou. Ele tinha ido entregar a roupa. E viu uma coisa que ele tinha e Sérgio não.
"Mãe. O Sérgio não tem quintal para brincar. Assim como a gente. Ele mora em apartamento. Está cheio de brinquedos. Mas sabe como ele brinca com terra? Dentro de um caixote que a mãe lhe arrumou!"
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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