GENTE E COISAS DA CIDADE Hoje, à noite
Lydia Federici
Perguntei a um amigo cansado. De ar torturado. Mãos inquietas. Olhos rodeados de preto:
"Que é que você vai fazer domingo à noite? Quando tudo estiver decidido?"
Ele cruzou as mãos. Balanceou na ponta dos pés. Largou os olhos numa nuvem.
À noite? Oh! A noite vai ser boa. Muito boa. A melhor que vou ter nestes últimos cem dias. Não haverá mais dúvidas. Não vou saber ainda quem foi escolhido. Mas isso já estará decidido. Selado definitivamente dentro das urnas silenciosas. E já não
terá muita importância. Porque, seja qual for o resultado, nada mais poderei fazer para modificá-lo. Nem eu. Nem ninguém mais".
Continuou a olhar a nuvem.
"Hoje à noite, quando tudo estiver decidido, em silêncio, também ficarei quieto. E silencioso. Talvez vá a um cinema. Se tiver certeza de que essa propaganda toda já passou. Ou talvez fique em casa. De sandália e short. É possível que consiga achar
graça no programa do Chico Anósio. Que o veja de alma livre. Sem dúvidas. Sem outras preocupações".
Respeitei sua nova interrupção.
"Época pré-eleitoral é coisa de tirar anos de vida. Maltrata mais que doença. Senta-se à mesa para comer. Que é que se faz? Discute-se. Durante o dia, descobrem-se amigos insuspeitados. Se não se tiver muita diplomacia, perdem-se amigos também. Uns
e outros dão palpites. Concordam e discordam. Batem-nos nas costas. Com carinho. Ou se afastam, com um olhar azedo. Todos dão conselhos. Todos têm planos próprios de como se poderia salvar, engrandecer, melhorar, tornar mais feliz e mais fácil, sob
um bom governo, a vida desta terra. Sugerem, com delicadeza, ou querem obrigar-nos, autoritariamente, a fazer isto ou aquilo. É uma coisa tremenda. E os pedidos que chegam?"
Continuei em silêncio.
"Tremendo e duro é esse período eleitoral. Corre-se de uma estação de rádio para outra. Pula-se de um canal de televisão para outro. Vai-se a comícios. Estafamo-nos. Tonteamos. Emagrecemos de tanto falar. Quase estouramos de tanto ouvir os outros
falarem. Coisas certas. Inverdades. Grosserias. No fim, cansados, já nem sabemos mais o que fazer. Duvidamos, até, de nossa própria capacidade de agir. É de arrasar qualquer um. Qualquer um que tenha um pingo de consciência".
Parou de olhar para a nuvem. Olhou para as mãos. Sorrindo pela primeira vez, disse que, na noite de domingo, pela primeira vez depois de muito tempo, apesar de ainda faltar toda a agonia da apuração, ia dormir sem dúvidas. Num sossego de anjo.
***
Você, naturalmente, sente curiosidade de saber qual foi o candidato que tanto sofreu e penou, não é verdade?
Digo-lhe já. Não foi candidato nenhum. É um simples eleitor.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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