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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 236)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 7 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Hoje, à noite

Lydia Federici

Perguntei a um amigo cansado. De ar torturado. Mãos inquietas. Olhos rodeados de preto:

"Que é que você vai fazer domingo à noite? Quando tudo estiver decidido?"

Ele cruzou as mãos. Balanceou na ponta dos pés. Largou os olhos numa nuvem.

À noite? Oh! A noite vai ser boa. Muito boa. A melhor que vou ter nestes últimos cem dias. Não haverá mais dúvidas. Não vou saber ainda quem foi escolhido. Mas isso já estará decidido. Selado definitivamente dentro das urnas silenciosas. E já não terá muita importância. Porque, seja qual for o resultado, nada mais poderei fazer para modificá-lo. Nem eu. Nem ninguém mais".

Continuou a olhar a nuvem.

"Hoje à noite, quando tudo estiver decidido, em silêncio, também ficarei quieto. E silencioso. Talvez vá a um cinema. Se tiver certeza de que essa propaganda toda já passou. Ou talvez fique em casa. De sandália e short. É possível que consiga achar graça no programa do Chico Anósio. Que o veja de alma livre. Sem dúvidas. Sem outras preocupações".

Respeitei sua nova interrupção.

"Época pré-eleitoral é coisa de tirar anos de vida. Maltrata mais que doença. Senta-se à mesa para comer. Que é que se faz? Discute-se. Durante o dia, descobrem-se amigos insuspeitados. Se não se tiver muita diplomacia, perdem-se amigos também. Uns e outros dão palpites. Concordam e discordam. Batem-nos nas costas. Com carinho. Ou se afastam, com um olhar azedo. Todos dão conselhos. Todos têm planos próprios de como se poderia salvar, engrandecer, melhorar, tornar mais feliz e mais fácil, sob um bom governo, a vida desta terra. Sugerem, com delicadeza, ou querem obrigar-nos, autoritariamente, a fazer isto ou aquilo. É uma coisa tremenda. E os pedidos que chegam?"

Continuei em silêncio.

"Tremendo e duro é esse período eleitoral. Corre-se de uma estação de rádio para outra. Pula-se de um canal de televisão para outro. Vai-se a comícios. Estafamo-nos. Tonteamos. Emagrecemos de tanto falar. Quase estouramos de tanto ouvir os outros falarem. Coisas certas. Inverdades. Grosserias. No fim, cansados, já nem sabemos mais o que fazer. Duvidamos, até, de nossa própria capacidade de agir. É de arrasar qualquer um. Qualquer um que tenha um pingo de consciência".

Parou de olhar para a nuvem. Olhou para as mãos. Sorrindo pela primeira vez, disse que, na noite de domingo, pela primeira vez depois de muito tempo, apesar de ainda faltar toda a agonia da apuração, ia dormir sem dúvidas. Num sossego de anjo.

***

Você, naturalmente, sente curiosidade de saber qual foi o candidato que tanto sofreu e penou, não é verdade?

Digo-lhe já. Não foi candidato nenhum. É um simples eleitor.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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