GENTE E COISAS DA CIDADE Coisas da memória
Lydia Federici
O ônibus chegou exatamente meio minuto depois dela ter parado no ponto. Encostou bem junto ao meio fio. O cobrador não
fez cara feia quando ela apresentou, com certo receio, a nota de duzentos. Havia um banco vago. E o rapaz, sentado junto à janela, encolheu-se no seu canto. Ocupando exatamente os cinquenta centímetros dos vinte cruzeiros da passagem.
Há muito tempo não via tanta sorte junta. Reconheceu o fato, sorrindo interiormente. Era moça equilibrada. Que sabia levar, com calma, os momentos ruins e os contratempos da vida. mas que sabia, também, dar valor e gozar, com plenitude, todas as
suas coisas boas. Pequeninas. Ou grandes.
Enquanto as árvores, a correr, passavam a seu lado, fazendo um barulho monótono e embalador, rememorou o que teria que fazer na cidade. Eram nove coisas. Uma em cada lado. Em cada rua. A primeira, logicamente, seria o recebimento de seu ordenado.
Na Prefeitura.
A última, a ida à mercearia, onde encheria de compras a sua sacola de plástico, muito bem dobrada na bolsa grande. Para as sete restantes, traçou o itinerário mais rápido e cômodo. Não gostava de
rodar inutilmente pela cidade. Indo e vindo, à toa. Palmilhando, por quatro vezes, o mesmo caminho. De mais a mais, com aqueles sapatos pontudos. Que já lhe começavam a adormecer o dedinho. Os dois. De ambos os pés.
Quando o ônibus parou na Praça Mauá, já traçara, mentalmente, o seu programa andarilho. E conseguiu segui-lo à risca. Recebeu na Prefeitura. Deixou três pés de meia, de fio corrido, com a cerzideira. Esperou, na casa de óculos, que lhe trocassem um
parafuso bambo na base do "ray-ban". pagou a conta da Telefônica, conjeturando sobre se, de fato, fizera tantas ligações interurbanas.
Encontrou, logo de saída, sem grande despencar de prateleiras, a blusa de linha que queria dar à irmã mais nova. No modelo, na cor e no número pretendidos. O que era outra grande sorte. Conseguiu
trocar, sem que o dono fizesse má cara, botões, linhas e outras miudezas, compradas dez dias antes. Em dois minutos, no cartório, obteve o reconhecimento das firmas de dois requerimentos. Pagou, sentindo os pés em brasa, a conta da água. Pronto! Só
lhe faltava ir à mercearia.
Ao caixeiro sorridente, pediu as oito coisas que mentalmente anotara. Ditou tudo de uma só enfiada. Sem titubear.
"Que memória a senhora tem!", comentou ele. Apesar da dor nos pés, ela sorriu. Com prazer. E certo orgulho. De fato, tinha boa memória. Questão de treino. Nada mais que método e treino. Pediu para usar, por um instantinho só, o telefone. Podia ser
que, de casa, se tivessem lembrado de mais alguma coisa para ver. Ou fazer. Ou pagar. Ou encomendar. Levantou o monofone. Discou o número 4. Ficou com o dedo no ar. Não se lembrava do resto do número. Não se lembrava e não se lembrou. Teve que
pegar, atônita, a lista telefônica.
***
Memória tem dessas coisas, amigos eleitores. Por via das dúvidas entrem, amanhã, na cabine, com nomes e números anotados!
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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