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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 233)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 4 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

"Santo Damão"

Lydia Federici

Seu Antonio é jardineiro efetivo de uma casa de grande jardim. Português dos bons. Desses aos quais a doçura do clima brasileiro não consegue amolecer. Nem as leis trabalhistas, mais humanas, fazerem trabalhar menos.

É certo que, aos sessenta anos, seu trabalho é um pouco mais moroso. De cinco em cinco minutos, passa a pedra no alfanje. Diz ele que assim, com a ferramenta sempre bem afiada, o trabalho é mais fácil. Mais rápido. Mais rendoso. Mentira! A gente sabe que é para seu velho coração acalmar as batidas. O caso é que, de um ou outro jeito, não há gramado mais bem aparado. Nem mais cheio de viço. Nem mais limpo. O seu jardim, seja lá na dormência do inverno ou no furor germinativo da primavera, está sempre em dia. Ordenado e perfeito que é um regalo.

Não se vê, nas duas árvores dos cantos, um galho seco e feio. Que seu Antonio ainda tem a cabeça firme para arriscar-se a ir até o topo. E cortar o galho triste. Leva tempo. Vai com cuidado. Mas vai. E desce feliz.

Rosa murcha também não enfeia as roseiras. Só as viçosas colorem aquele canto de banqueta. Pra isso seu Antonio tem olhos de lince. E uma tesoura de podar que, nem nas manhãs de domingo, tem direito à folga.

A cerâmica branca do jardim também fica aos seus cuidados. Vive mais limpa e brilhante do que quando saiu da fábrica. Não adianta a patroa querer poupar-lhe esse trabalho. Mandando a empregada lavá-la e encerá-la. O português brioso manda a mulata ir fazer outro serviço. No seu jardim, no seu quintal, ninguém põe a mão. Não enquanto ele estiver vivo. Com a saudinha que Deus - e levanta o chapéu - ainda lhe conserva.

Passa todas as horas de sol, desde o primeiro ao último minuto de luz, a rodar pelo jardim. Cortando, estaqueando, limpando, lustrando, aguando, fazendo mudas. Quando chove, mete-se na estufa. E não é raro, à noite, vê-lo de lanterna, à procura de bichos cabeludos que lhe comem as folhas das begônias.

Tem paciência com a sujeira da natureza. Nunca resmungou contra a chuva que o obriga a encerar os cacos. Nem contra as flores do ipê que lhe mancham o gramado. Quatro, cinco vezes ao dia, acocora-se no chão e limpa o grande canteiro verde. Mas recorre, furioso, ao seu vasto vocabulário lusitano, para descarregar sua raiva contra os namorados que jogam, para dentro, carteiras vazias de cigarros. Contra os moleques que atiram pedras no tapete verde da grama. Ou pedaços de jornal. Ou folhas de caderno.

Imaginem, portanto, a agonia do pobre e caprichoso jardineiro, nestes dias de propaganda eleitoral. Farta-se de catar papeluchos. Que amarrota, com raiva, entre os dedos curtos, antes de atirá-los no saco de recolher lixo. Há poucos dias, seu Antonio perdeu, de vez, as estribeiras, quando percebeu o que vinha pelo céu. Milhares de papeizinhos. Ergueu os dois punhos. E gritou para o avião que já ia longe:

"Foi pra isso que Santo Damão te inventou, diabo?"


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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