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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 232)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 3 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Só mais uns dias

Lydia Federici

Abrimos a janela para ver uma árvore florida. Uma faixa rabiscada tira-nos até o sol. Encostamos o corpo cansado num poste. Dali desgrudamos cheios de cola. Sentamos num banco da praia. Nossa educação não permite que nos sintamos a gosto. Como descansar, se sabemos estar sentados sobre uma cara séria? ou sorridente? Andamos pela rua. Pisando nomes que respeitamos.

Não é uma desgraça isso tudo? Mas isso, afinal, é uma desgraça evitável. Podemos desviar os olhos. Ficar de pé sem nos apoiarmos em ninguém. Como podemos, também, alongar os passos. Ou diminuí-los Em passo de dança.

Há outra desgraça, entretanto, a que não podemos, infelizmente, fugir, nesta época de propaganda eleitoral. É a da propaganda sonora. Falada ou musicada. Gritada. Berrada a plenos pulmões. Por gargantas que parecem tomar gemada todas as manhãs. Olhos têm pálpebras. Mas ouvido, erradamente, não. E essa ausência de defesa auditiva foi descoberta pelos candidatos. Que, pelos ouvidos, a muque, nos fazem entrar avalanches de pedidos patéticos. Ameaças sinistras. Ordens autoritárias ao extremo.

É certo que um rádio pode ser desligado. E um aparelho de televisão também. Mas como fugir aos alto-falantes dos diretórios? Pegando por outras ruas? É uma saída. Mas quem tem escritório na mesma praça? E tem obrigação de lá trabalhar? E como escapar dessas peruas que nos perseguem a cada esquina?

Contou-me uma amiga um fato acontecido, há meses, em Porto Velho. Onde fica isso? Nas matas do Oeste brasileiro. Bem lá nas lonjuras da floresta. Porto Velho é capital do território de Rondônia.

Um belo dia, sem dizer "água vai", Porto Velho inteira acordou com o campainhar desatinado de um despertador. Eram seis horas da manhã. E o toque de despertar soava em cada duas esquinas. Partido de poderosos alto-falantes. Não houve aquele que não pulasse da cama. Assustado.

Quando o despertador foi perdendo a corda, apareceu, melosa, uma voz a desejar, a toda a população, um belo e bom dia de trabalho. Terminando o cumprimento gentil, a voz mudou de tom e começou a dar ordens. Mandou o marido levantar-se e ir tomar sua ducha. mandou a mulher pular da cama, apesar da preguiça, e ir fazer o café. Mandou as crianças escovar os dentes e pegar no caderno de lições. Foi uma catadupa de ordens. Dadas às empregadas, aos vendedores, aos bancários, até aos vagabundos e bêbados. Ninguém escapou.

Nesse primeiro dia, todo mundo se pôs a rir. Até que fora uma boa piada. Mas, no dia seguinte, quando o programa foi repetido, houve narizes torcidos àquela inovação esdrúxula. E depois a história deixou de ter graça. Era um desaforo verdadeiro! Os habitantes incomodados exigiram a volta ao silêncio. O máximo que conseguiram foi um atraso de meia hora no início da programação. Que fazer? Ora! Meteram mãos à obra. Desligaram fios. Largaram os alto-falantes no meio da rua.

Se não estivéssemos no fim, aqui aconteceria o mesmo, Lívia.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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