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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 231)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
2 de outubro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Tia Lu
Lydia Federici
Para os que se sentem doentes, cansados, desanimados, perguntando-se que rumo dar à inutilidade de suas vidas, tenho o
grande prazer de apresentar tia Lu. Não reparem em seu corpo magro. Mas observem sua alma.
Fisicamente, tia Lu é pequena, quase mirrada. Vive às voltas com oftalmologistas. E Deus ainda lhe mandou uma bela úlcera de estômago. Mas ela não liga para nada disso. Como, desde pequena, teve que desdobrar-se para criar três irmãs menores, nunca
teve muito tempo para pensar nos seus males. Nas suas dores. Em suas ilusões ou aborrecimentos. Apoquenta-se, porém, ao extremo, com o sofrimento alheio. Daí, talvez, a sua úlcera.
É a pessoinha mais utilmente irrequieta que já conheci. Acho que, até dormindo, seu subconsciente trabalha. Para o bem. Para os outros. Nunca foi de chás, comitês e quermesses. Por falta de tempo. Mas o que faz, nos cinco minutos livres de seus
dias e noites, é um nunca terminar de pequeninos trabalhos manuais. Só tem um filho. Mas arranjou cinquenta afilhados. E, para todos eles, são rosários de camisinhas, blusas, fraldas, sacolas de crochê, guarda-pentes e canetas, lenços monogramados.
É a maior aproveitadora de restos. Sem falar na transformação dos restos de comida, aproveita nesgas de fazenda, fins de novelos de lã fios de linha, vinte centímetros de renda. De seus dedos de juntas nodosas saem, senão obras-primas, pelo menos
presentes úteis, agradáveis de receber. Porque repletos de amor.
Não foi ela quem inventou o "time is money". Mas ninguém mais, tanto quanto tia Lu, sabe fazer caber, em 10 minutos, tanta coisa junta. Enquanto espera a calda de açúcar dar ponto, passa uma camisa, a cantarolar uma modinha. E, mentalmente, escreve
uma carta a uma das irmãs. Se não há mais roupa pra passar e a danada da calda ainda não atingiu o ponto, ela prega uma alça que vai soltar-se da combinação, arruma a mesa, tira o pó de um quadro.
Dura de ouvido, não se preocupa com a falta do rádio. Desde que levanta, ela própria vai musicando, em surdina, o seu dia. Canta valsas saltitantes. Compõe canções de carinho. A uma sobrinha ausente que ela sabe atrapalhada com os exames. Ao sol
que lhe seca a roupa na varanda. Ao feijão que borbulha.
Na semana passada, visitando duas irmãs que moram no mesmo apartamento, tia Lu, por sua vez, recebeu a visita de um sobrinho. Absolutamente inesperada. Julgava-o em Porto Alegre, com a família. Foi uma alegria. Tão grande que teve de ser expandida
em passos de dança.
"Como é, tia Lu? Sua irmã caçula está morrendo de saudades. Volto amanhã cedo, de perua. Vamos? Ou não tem coragem de enfrentar dois dias de estrada?" Falou a rir. Abraçando-a enquanto gritava para ser ouvido.
Tia Lu não pestanejou. Passou, vaidosa, a mão pelos cabelos lisos. Mas isso não era problema. "Você acha que, agora que engordei um quilo e me sinto bem, vou deixar de aproveitar? Claro que vou. De repente pioro ou fico velha, não é?"
Juntou suas coisas. As feitas, as iniciadas. As que tencionava fazer. Arrancou mudas de plantas que Ia-Iá, lá no Sul, não havia de ter. Fez bolos.
No dia seguinte, embarcou na perua. Ela, sua alegria, seus setenta anos!
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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