GENTE E COISAS DA CIDADE Autoridade
Lydia Federici
Que é autoridade? Sei lá. Mas acho que é isto.
***
A classe estava indócil. Depois de duas horas de aula, a professora pensava, apertando a fronte, que atitude tomar. Do jeito em que iam as coisas, se ela não adotasse uma providência qualquer, algo
sucederia até o final do período. E isso ela não permitiria que acontecesse.
Abarcou, num movimento circular de olhos, as quarenta e duas carteiras da sala. Os meninos, na parte visível, permaneciam quietos. A escrever. A olhar o teto. Mas, sob as carteiras, as oitenta e quatro pernas se remexiam com desassossego. E havia
aquele zumzum camuflando-se atrás das bocas fechadas. Fechadas mas não silenciosas.
Nunca perdera o controle da classe. Sempre se fizera respeitar. E obedecer. os meninos, mesmo os taludos do 4º ano, aborreciam-na, às vezes. Mas nunca haviam saído de um limite razoável. Insubordinação nunca houvera. Má-criação tampouco. Tinha o
dom de compreender. E de fazer com que os outros compreendessem as coisas. Chegava-se aos alunos. Mas sempre como professora. Professora amiga. Justa, bem humorada. Mas professora sempre.
Quando percebeu que algo principiava a escapar-lhe das mãos, acendia o sinal vermelho. Os alunos sentiam o perigo.
"Quando ela começa a ficar vermelha", explicava um garoto inteligente, "a gente vai perdendo a cor".
Que fazia ela quando seu rosto avermelhava? Oh! Quase nada. Punha-se, apenas, a falar. Só isso. Falava. Mas como flava. Cada palavra era uma chicotada no brio do infeliz. Tinha o dom da palavra, sim. Desnudava a alma, arrasava a criatura,
despertava-lhe o orgulho, indicava-lhe o caminho a seguir. Não se negando a palmilhá-lo junto. E pronto. Estava resolvido o problema.
Mas, naquele dia, a classe inteira parecia estar com o diabo no corpo. Nada havia que justificasse ou explicasse aquela rebeldia coletiva. Que se avolumava. Surda. Mas que poderia estourar a troco de um nada. Toda a sala parecia uma imensa panela
de pressão. E ela, também, lá dentro. Querendo dominar-se para poder dominar. Seria do noroeste? Fosse lá por que motivo fosse, era necessário abrir uma válvula de escape. Criar um problema novo. Definido. Fazer a classe seguir outro rumo.
Destampar-se. Mas o quê?
Desceu do estrado. Chegou até uma das carteiras. O menino inclinou mais a cabeça sobre o caderno. Tenso. Ela viu-lhe a gola da camisa com um risco escuro. Correu os olhos pelos alunos mais próximos. E achou a solução. Já teriam com que se
preocupar. Começou de manso. Eles arregalaram os olhos. Encabulados, sumiram atrás das carteiras. Escondendo sapatos. Virando colarinhos. Esfregando joelhos. Tapando orelhas. A tensão desapareceu. Só ficou aquele problema. E ái daquele que, no dia
seguinte, não se apresentasse de forma irrepreensível. Naquela tarde houve de tudo. Cabeleireiro, graxa, sabão. Escova e álcool. Inclusive um que, por via das dúvidas, pediu:
"Mãe. Você quer me ajudar a tomar banho?"
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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