GENTE E COISAS DA CIDADE Eles tinham razão
Lydia Federici
"Quando chega alguém, e abraça você, que faz você?"
A pergunta surgiu de chofre na sala morna. De paredes cobertas de quadros. Quadros quentes também. Cálices de licor brilhavam sobre a mesinha baixa.
A moça segurou o gole adocicado na boca. Se o engolisse, engasgaria. Deus! Que pergunta. E essa agora? Olhou, meio ressabiada, para a jovem senhora. Ela a observava com um sorriso natural. Enviesou, então, um olhar para os dois homens sentados em
sua frente. Gêmeos. E tão iguais em tudo que ela nem sabia de onde partira a pergunta. Talvez de Paulo. Que Pedro, até para dizer "boa noite", pensava dez segundos e levava quinze para dizer as duas palavras gaguejadas. Ambos a encaravam com ar de
expectativa nos largos rostos queimados.
A moça, ganhando tempo, pousou o cálice. Tirou, da superfície da mesa, com a ponta do dedo, uma migalha de fumo. Engoliu o licor que aguara em sua boca. E fitando Paulo, embora a piscar, disse com igual naturalidade:
"Acho que não entendi a pergunta. Quer... Quer explicar melhor?"
Pedro olhou para Paulo. Paulo pra Maria. Maria para a moça. Pesou na sala um silêncio embaraçoso. Por fim, Paulo levantou a mão. Num gesto de desculpa. E os três, com vivacidade, puseram-se a falar em húngaro. A moça esperou. Sempre esperava, com
paciência, quando os amigos, atrapalhados, levantavam a mão e decidiam, na sua língua, a forma mais fácil de traduzir seu pensamento para o 'brasileiro'. Nunca se zangava. Por mais que durasse a discussão. Imaginava o inverso. Ela, lá fora,
tentando fazer entender-se.
"Igem". Foi Maria quem falou. Dos três, era quem tinha maior facilidade, quer dizer, menor dificuldade, em expressar-se. Não fosse ela mulher.
A história resumia-se no seguinte. Eles nunca sabiam o que deviam fazer quando se encontravam com amigos e conhecidos brasileiros. Por que? Porque brasileiro, quando chega, abraça. Quando se despede, abraça. Que fazer?
Ora! Brasileiro é carinhoso. Supõe que todos o sejam. Quando ele abraça, é abraçá-lo também. Muito simples. Sim. Simples para os brasileiros. Que nasceram se abraçando. Mas não para outros povos. Húngaros, por exemplo. Como pode um húngaro abraçar,
se sua mão direita está presa na mão do brasileiro? Ora! É abraçar com a esquerda. Como nós fazemos. Com naturalidade. Com calor. Com muito carinho.
O resto da noite de visita foi gasto em explicações e demonstrações.
Estrangeiro tem cada ideia. De onde tiram eles esse descoco de que brasileiro vive a dar abraços? Você, meu amigo, e você, amiga minha, concordariam com o exagero dessa observação de gente de outra terra? De outros costumes?
Claro que não! É exagero puro. Conversa para fim de noite.
***
Ai. Como estávamos enganados. Maria, Pedro e Paulo tinham razão. Que o digam as vacinas de nossos pobres braços. É verdade. É verdade sim, Vivemos de abraço em abraço.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|