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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 217)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
15 de setembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Coisa preta
Lydia Federici
Chama-se Cipriana. Uma dessas pretas de alma muito branca. Não é retinta. Cai mais pro chocolate. Chocolate ao leite.
Apesar da cor, é clara e limpa e pura de causar inveja. Usa sempre um lenço tapando-lhe, bem apertado, a carapinha branca. Questão de hábito. Habituou-se tanto ao lenço protetor que, de manhã, antes mesmo de lavar o rosto, já está com os cabelos
escondidos.
"É pra não esfriá a cabeça!", explica, com paciência, a mostrar toda a dentadura branca.
Dentadura e óculos. Seus grandes orgulhos. Presentes do "dotô". Que é muito bom. Qual um filho. Satisfação igual à de mostrar os dentes, num sorriso largo de lábios secos e murchos, só a de abrir caixinha dos óculos. Sempre guardada no bolso fundo
da saia. Junto com o lenço.
"Pra num precisá de procurá quano quero lé!" explica também. Com que orgulho diz aquele "lê". É alfabetizada, sim senhor. Fala errado porque aprendeu a ler quase trinta anos depois de ter começado a falar.
Mora na casa dos patrões. Num quartinho só dela. Com tapete, rádio e abajur. Um abajur pra iluminar bem o que ela quiser "lê". Não tem obrigação de trabalhar. Nem outra obrigação qualquer. O "dotô" não quer. Diz que ela ganhou o direito de
descansar. Mas Cipriana, quando está cansada de ficar à toa, ainda agarra uma vassoura. E esquenta as costas ao sol. Ou então se mete na cozinha. Pra fazer uns bom-bocados dourados. Ou ainda fica chocando, com seu largo sorriso, os passeios de
bicicleta do caçula. Ao redor da casa.
Nestes últimos dias, Cipriana não está no seu normal. Continua a amarrar, desde manhãzinha, o lenço na cabeça. Continua a sorrir. Vive a apalpar a caixinha dos óculos. Mas deu pra andar ensimesmada. Uma preocupação muito grande, dobrando-lhe mais o
corpo miúdo. Chegou a começar uma discussão com a cozinheira nova. Coisa que, na vida, dona Lavínia nunca a vira fazer. Pelo menos não nos 10 anos em que a conhecia.
À noite, falou com o marido. "Cipriana não está boa, meu bem. Diz que não tem nada, mas acho melhor você ir conversar com ela. Com o 'dotô' ela se abrirá". Sorriu. Sem ciúmes. Compreendia e aceitava a paixão da velha pelo deus que ninara, vira
casar-se e dar-lhe mais dois deuses para criar.
Ele foi. Bateu na porta di quarto. Entrou. A luz do abajur iluminava um mundo de folhas de jornais. Espalhadas por todo canto. Cipriana, ajoelhada, também ficou sem jeito. Cipriana rezava. Suas mãos unidas provavam-no. Por que rezava, se ela nunca
fora disso?
"A preta Cipriana tá rezano, sim, dotô. Apontou os jornais, sacudindo a cabeça branca. "Eles tão quereno revolução. Num sabe o que é isso. A coisa tá preta, dotô. Quando a coisa, aqui, tá preta, a gente tem qui rezá". Voltou a entrecruzar os dedos
escuros e trêmulos.
"Acho bom o dotô rezá também. A cabeça dos hómi tá dura. Coração tamém. Só Deus é qui pode arresolvê".
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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