GENTE E COISAS DA CIDADE Coisa preta
Lydia Federici
Chama-se Cipriana. Uma dessas pretas de alma muito branca. Não é retinta. Cai mais pro chocolate. Chocolate ao leite.
Apesar da cor, é clara e limpa e pura de causar inveja. Usa sempre um lenço tapando-lhe, bem apertado, a carapinha branca. Questão de hábito. Habituou-se tanto ao lenço protetor que, de manhã, antes mesmo de lavar o rosto, já está com os cabelos
escondidos.
"É pra não esfriá a cabeça!", explica, com paciência, a mostrar toda a dentadura branca.
Dentadura e óculos. Seus grandes orgulhos. Presentes do "dotô". Que é muito bom. Qual um filho. Satisfação igual à de mostrar os dentes, num sorriso largo de lábios secos e murchos, só a de abrir caixinha dos óculos. Sempre guardada no bolso fundo
da saia. Junto com o lenço.
"Pra num precisá de procurá quano quero lé!" explica também. Com que orgulho diz aquele "lê". É alfabetizada, sim senhor. Fala errado porque aprendeu a ler quase trinta anos depois de ter começado a falar.
Mora na casa dos patrões. Num quartinho só dela. Com tapete, rádio e abajur. Um abajur pra iluminar bem o que ela quiser "lê". Não tem obrigação de trabalhar. Nem outra obrigação qualquer. O "dotô" não quer. Diz que ela ganhou o direito de
descansar. Mas Cipriana, quando está cansada de ficar à toa, ainda agarra uma vassoura. E esquenta as costas ao sol. Ou então se mete na cozinha. Pra fazer uns bom-bocados dourados. Ou ainda fica chocando, com seu largo sorriso, os passeios de
bicicleta do caçula. Ao redor da casa.
Nestes últimos dias, Cipriana não está no seu normal. Continua a amarrar, desde manhãzinha, o lenço na cabeça. Continua a sorrir. Vive a apalpar a caixinha dos óculos. Mas deu pra andar ensimesmada. Uma preocupação muito grande, dobrando-lhe mais o
corpo miúdo. Chegou a começar uma discussão com a cozinheira nova. Coisa que, na vida, dona Lavínia nunca a vira fazer. Pelo menos não nos 10 anos em que a conhecia.
À noite, falou com o marido. "Cipriana não está boa, meu bem. Diz que não tem nada, mas acho melhor você ir conversar com ela. Com o 'dotô' ela se abrirá". Sorriu. Sem ciúmes. Compreendia e aceitava a paixão da velha pelo deus que ninara, vira
casar-se e dar-lhe mais dois deuses para criar.
Ele foi. Bateu na porta di quarto. Entrou. A luz do abajur iluminava um mundo de folhas de jornais. Espalhadas por todo canto. Cipriana, ajoelhada, também ficou sem jeito. Cipriana rezava. Suas mãos unidas provavam-no. Por que rezava, se ela nunca
fora disso?
"A preta Cipriana tá rezano, sim, dotô. Apontou os jornais, sacudindo a cabeça branca. "Eles tão quereno revolução. Num sabe o que é isso. A coisa tá preta, dotô. Quando a coisa, aqui, tá preta, a gente tem qui rezá". Voltou a entrecruzar os dedos
escuros e trêmulos.
"Acho bom o dotô rezá também. A cabeça dos hómi tá dura. Coração tamém. Só Deus é qui pode arresolvê".

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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