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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 216)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 14 de setembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Alá e a montanha

Lydia Federici

O grande problema do dia é esse. Voltemos ao assunto. Se não mais servir, felizmente, para hoje, que sirva para a próxima greve. É uma história fresca, fresca. Só mudei o nome do personagem.

Dona Maria fora à cidade. Para pagar umas contas que nunca, em tempo normal, deixara de liquidar, no máximo, até o dia cinco de cada mês. Neste setembro atrasara-se. Por causa da visita de uma filha. Que viera, de longe, "matar as saudades aos velhos pais". E, depois disso, pela dificuldade da condução.

Como o caso da greve não se resolve, ela, como portuguesa decidida, tomou a sua resolução definitiva:

"Mesmo que chova a cântaros, nem que lá tenha que ir a pé, amanhã eu irei".

E foi assim que ela foi. Pegou a sua bolsa de couro de vitelo, prendeu-a bem presa, sob o braço gordo, abriu o guarda-chuva e saiu batendo, firme, os saltos dos grossos sapatos. Teve uma sorte dos diabos. Ao passar pelo primeiro ponto, ouviu um ronco grosso. Era um ônibus. Tomou-o, içando-se, a bufar, para dentro do veículo.

Pagou as contas. Lembrou-se de umas coisitas que lhe faltavam em casa. Procurou-as. Comprou-as. Os pacotes pequenos mergulharam na bolsa. O embrulho da peneira de taquara ficou pendurado no cabo do guarda-chuva. E, toa satisfeita, foi para o ponto do ônibus. Esquecida da vida. Esquecida da greve. Lembrando-se apenas de um calo que o sapato molhado, com certeza, irritara.

Meia hora ficou de pé, no ponto. No começo, confiante. Depois, desesperançada. Aborrecida. Danada. Furiosa de vez. Quando estava a ponto de explodir, decidiu-se. Tomaria um carro. Não táxi. Vê que ela é dessas que se dão a esse luxo. Pediria condução ao primeiro carro que passasse. Desceu do meio fio. E levantou, sacudindo-o, o braço que segurava o guarda-chuva de onde se dependurava a peneira. O automóvel parou.

"Pra onde vai vosmicê?" perguntou ao senhor meio boquiaberto. "Para a Casa de Saúde? Serve-me bem. Com sua licença". E aboletou-se no carro. Desceu na Casa de Saúde. Depois de uma viagem conversada. Muito bem humorada.

Na Conselheiro Nébias, bloqueou um carro pequenino. Um "Volks". Que ia até a Igreja do Embaré. Foi um custo acomodar a gordura, o guarda-chuva com a peneira, mais a bolsa, dentro daquela exiguidade de espaço. Mas enfim! Seria uma ingratidão se ainda se pusesse a queixar, pois não? Desceu, entre risadas, no canal 4. E bloqueou outro carro. Que ia, pela larga avenida, rumo à cidade.

E foi assim que dona Maria, toda pimpona, desceu do caminhão bem no portão de sua casa. Mal chegada, tocou-me o telefone. Para dizer-me que a crônica e os avisos "Dê um lugar... "estavam errados. O certo? O certo é:

"Me dá um lugar aí?..."

É. Se Alá não vai à montanha...


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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