GENTE E COISAS DA CIDADE Alá e a montanha
Lydia Federici
O grande problema do dia é esse. Voltemos ao assunto. Se não mais servir, felizmente, para hoje, que sirva para a
próxima greve. É uma história fresca, fresca. Só mudei o nome do personagem.
Dona Maria fora à cidade. Para pagar umas contas que nunca, em tempo normal, deixara de liquidar, no máximo, até o dia cinco de cada mês. Neste setembro atrasara-se. Por causa da visita de uma filha. Que viera, de longe, "matar as saudades aos
velhos pais". E, depois disso, pela dificuldade da condução.
Como o caso da greve não se resolve, ela, como portuguesa decidida, tomou a sua resolução definitiva:
"Mesmo que chova a cântaros, nem que lá tenha que ir a pé, amanhã eu irei".
E foi assim que ela foi. Pegou a sua bolsa de couro de vitelo, prendeu-a bem presa, sob o braço gordo, abriu o guarda-chuva e saiu batendo, firme, os saltos dos grossos sapatos. Teve uma sorte dos diabos. Ao passar pelo primeiro ponto, ouviu um
ronco grosso. Era um ônibus. Tomou-o, içando-se, a bufar, para dentro do veículo.
Pagou as contas. Lembrou-se de umas coisitas que lhe faltavam em casa. Procurou-as. Comprou-as. Os pacotes pequenos mergulharam na bolsa. O embrulho da peneira de taquara ficou pendurado no cabo do guarda-chuva. E, toa satisfeita, foi para o ponto
do ônibus. Esquecida da vida. Esquecida da greve. Lembrando-se apenas de um calo que o sapato molhado, com certeza, irritara.
Meia hora ficou de pé, no ponto. No começo, confiante. Depois, desesperançada. Aborrecida. Danada. Furiosa de vez. Quando estava a ponto de explodir, decidiu-se. Tomaria um carro. Não táxi. Vê que ela é dessas que se dão a esse luxo. Pediria
condução ao primeiro carro que passasse. Desceu do meio fio. E levantou, sacudindo-o, o braço que segurava o guarda-chuva de onde se dependurava a peneira. O automóvel parou.
"Pra onde vai vosmicê?" perguntou ao senhor meio boquiaberto. "Para a Casa de Saúde? Serve-me bem. Com sua licença". E aboletou-se no carro. Desceu na Casa de Saúde. Depois de uma viagem conversada. Muito bem humorada.
Na Conselheiro Nébias, bloqueou um carro pequenino. Um "Volks". Que ia até a Igreja do Embaré. Foi um custo acomodar a gordura, o guarda-chuva com a peneira, mais a bolsa, dentro daquela exiguidade de espaço. Mas enfim! Seria uma ingratidão se
ainda se pusesse a queixar, pois não? Desceu, entre risadas, no canal 4. E bloqueou outro carro. Que ia, pela larga avenida, rumo à cidade.
E foi assim que dona Maria, toda pimpona, desceu do caminhão bem no portão de sua casa. Mal chegada, tocou-me o telefone. Para dizer-me que a crônica e os avisos "Dê um lugar... "estavam errados. O certo? O certo é:
"Me dá um lugar aí?..."
É. Se Alá não vai à montanha...

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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