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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 215)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 13 de setembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Dê um lugar

Lydia Federici

A moça, apesar da aparência decidida, era, na verdade, bem tímida. Tinha medo de parecer ridícula. E não gostava de receber um "não". Quando viu, no jornal, o retângulo que dizia: "Santista. Coopere com a população. Dê um lugar no seu carro", teve um arranque de coragem. E decidiu-se. No dia seguinte, se fosse à cidade, pararia num ponto de bonde. Perguntaria se alguém queria aproveitar a condução. Como todos deviam ter visto aquela solicitação estampada, dificilmente não compreenderiam e não aceitariam sua oferta.

Na manhã seguinte foi para a cidade. Ao ver gente no primeiro ponto por que passou, tirou o pé do acelerador. Mas não chegou a parar. Com que cara ficaria, se ninguém se mexesse?

No segundo ponto, só havia homens. Tinha jeito, ela, uma moça, convidar homens para entrar no seu carro? No terceiro ponto, ao ver um conhecido, fez figa, inconscientemente. Mas pôs o pé no breque. Que diabo! Será que ele se negaria?

Não se negou. Ao contrário. Sentou-se ao seu lado numa alegria que chegou a comovê-la. E, a uma sugestão sua, com seu vozeirão simpático, pôs a cabeça pra fora e perguntou quem mais queria aproveitar. Três desconhecidos, desmanchando-se em agradecimentos, pularam para dentro. Repuxando as abas das capas. Atrapalhados com os guarda-chuvas que não se queriam fechar.

E nunca ele guiou com tanta satisfação. Parecia-lhe estar cumprindo um dever. Um dever de solidariedade humana. Conversou trivialidades. O coração boiando em alegria. Fora tão fácil! Sentia-se tão contente por ter vencido sua timidez. Havia tanto calor naquela sem-cerimônia entre desconhecidos.

Mas o máximo da emoção estava reservada para o fim da viagem. Quando largou os convidados numa das ruas da cidade. Disse-lhe um deles:

"Se todos que têm carro fizessem como a senhora, a vida seria melhor".

Com essa frase cantando-lhe alegremente nos ouvidos, fez, na cidade, o que tinha para fazer. Quando voltou a pôr o motor em funcionamento, para retornar, não havia dúvidas nem medo em seu coração. Parou no primeiro ponto. Havia duas mulheres encolhidas sob um guarda-chuva. Que a olharam sem compreender. Encolhendo-se ainda mais. Mas um homem gordo, de camiseta de meia, evitou que ela se sentisse ofendida:

"Dona, vou pra outro lado. Mas, de qualquer forma, que Deus lhe agradeça. E que a acompanhe".

E a moça, engatando a marcha, achou estranho que aquelas duas negativas não lhe ferissem o orgulho. Nem empanassem a alegria que sentia. Nem lhe tivessem dado vontade de mandar todos para o meio do inferno.

No próximo ponto havia uma mulher de meia idade. Que ia para o seu lado. Embarcou, silenciosa, dizendo um "obrigada" sem entusiasmo. No meio do caminho, fê-la parar. Descia ali. "Que Jesus a ilumine!", falou, batendo a porta, com um sorriso cansado.

Deus! Vale a pena dar um lugar no carro. Experimentem.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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