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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 213)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 11 de setembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Alcides

Lydia Federici

Já haviam dado o sinal. Mas o garoto levantou o braço e, com um sorriso, ficou ouvindo o tilintar da campainha. Lá, sobre a cabeça do motorneiro. Quem iria brigar por tão inocente brincadeira? É tão bom mexer-se um pouco depois de quatro horas de imobilidade. Tão bom dar o sinal e ver o bonde, tão grande, obedecer ao toque da campainha! Tão pequena.

Enquanto o bonde diminuía a marcha, o moleque juntou os livros e cadernos sobre o braço. Levantou-se e foi varando o banco. Só alcançou o estribo quando o veículo se imobilizava. Diante do ponto. Pulou para a rua.

Pulou para a rua e ali ficou estendido. Um carro que avançara, entre o bonde e o meio fio, derrubou o garoto. Não teve tempo de defender-se. Nem pensara, talvez, em fazê-lo. Porque sabia que, parado o bonde, no ponto, o carro também teria que parar.

Não parara. Livros e cadernos rolaram pelo chão. E ali ficaram. Tão inertes quanto o garoto de calças de brim e blusa branca. Aos que foram socorrê-lo, ele tentou sorrir. Foi o único esforço que, assustado, pôde fazer. E disse, muito baixo, com voz de criança chorosa:

"Chamem minha mãe".

E foi só. Nada mais que isso. Acabou-se dentro da ambulância. Nem ouvindo a sirene. O toque da sirene que ele, como o da campainha, tanto gostava de ouvir.

Quem era o garoto? Quem o matara? Que se iria fazer?

O garoto era um desses milhares de crianças da cidade. Tinha um nome. Como todas as crianças têm. Chamava-se Alcides. Um menino de quase treze anos. Que nunca chegaria a fazê-los. Era bom? Era mau? Ora. Era apenas uma criança. Uma criança que tinha o direito de crescer. Quem o matara? Um carro. Um carro com uma deficiência mecânica. Ou guiado por um motorista apressado. Ou distraído.

Um carro que poderia ter sido o meu. Ou o seu, meu amigo. Porque, quem se locomove sobre rodas, atrás de uma direção, com o pé no acelerador, é sempre um criminoso em potencial. Embora, acredito-o piamente, sempre involuntário. Se alguém pudesse prever que, guiando, um dia, mataria uma criança, nunca esse alguém poria sequer um ronronante motor em funcionamento.

No entanto, Alcides morreu. Os pais olhavam-no sem compreender. Quando lhes perguntaram que iriam fazer, os pobres levantaram os olhos secos. Nada! Nada que intentassem fazer lhes traria de volva, vivo, o menino que dormia.

***

Não gosto de histórias tristes. Desculpem-me. Mas todos os que guiam deviam ter visto duas mãos maltratadas ajeitando a cabeça machucada do garoto, sobre o travesseiro duro. No último carinho, silencioso e impotente, de uma mãe que não compreendia. Que não compreendia porque Alcides morrera assim.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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