GENTE E COISAS DA CIDADE Queixa
Lydia Federici
É uma senhora. De belos cabelos prateados.
Ora. A uma senhora não se diz não. Muito menos se o tempo lhe branqueou as têmporas. E a nuca. E ainda menos se a gentileza de sua fala, macia e mansa, provoca-nos a vontade de atendê-la.
O caso é o seguinte. Começando desde o começo. Ela mora num antigo bangalô. Que, há coisa de uns dois ou três anos, foi reformado. Vendo-o, brilhante de vidros, colorido de cerâmica, enfeitado com pequeninas pedras, um só detalhe revela a sua
idade. Não se debruça sobre a rua. Como, nesta miséria cada vez maior de chão, todas as construções atuais. Ao contrário. Esconde-se, tanto quanto possível, para dentro de um terreno largo e profundo. Coberto de um gramado de grama branca. Liso e
igual como um tapete. Alguns tufos de flores rasteirinhas quebram-lhe a monotonia. E na frente do parque, que jardim assim é um parque verdadeiro, há um flamboyant de galhos desnudos.
É nesse flamboyant engalharado que começa a desgraça. Está ali que é um convite à passarada. Um poleiro bem ao gosto dos minúsculos pardais e dos espalhafatosos bem-te-vis. E são estes últimos que completam a desgraça.
Se eles se aboletassem nos ramos com graça, e ali ficassem, calmos, a apreciar a beleza buliçosa da manhã, ou a languidez da tarde que desce, nada sucederia. Acontece, porém, que bem-te-vi não é
pássaro silenciosamente contemplativo. Tampouco egoísta. A beleza que vê tem que ser repartida. Com sua mulher. Com toda sua prole. Vai daí o solo estridente que inicia. Solo que vira dueto. Dueto que se transforma em terceto. Em quarteto.
Ora. Moleque é bicho que vive de orelha empinada. Se ouve deslize de minhoca, vê que deixa passar uma sinfonia estridente de gargantas de bem-te-vi. Como o papo amarelo se destaca contra o azul do céu, encontrá-lo é coisa de segundos. E mandar-lhe
uma estilingada é ação instantânea.
Ora, novamente. O bem-te-vi está empoleirado no flamboyant. O flamboyant está na frente do bangalô. A pedra sobe. Se tiver a sorte de bater num galho, nada acontece. Mas se o projétil continuar, livre, sua trajetória, há um tinir de vidro
estilhaçado.
Sabe você, meu amigo, quanto custa um vidro especial, de dois metros quadrados?
Essa a queixa de uma senhora. De belos cabelos prateados.
Deus! A quem endereçar a queixa? Moleque não lê isto. Polícia também não. Ou, supondo que alguma autoridade responsável saiba da queixa, será que, em véspera de eleição, terá tempo de arrebanhar, dos moleques, os danosos estilingues? Com tantas
outras coisas mais importantes a prender-lhes a atenção?
E então? Então, minha senhora, só vejo uma saída. Apelar para os homens é inútil. Enderecemos a queixa aos bem-te-vis. Talvez eles mudem de galho.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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