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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 210)
Em mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca
Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em
6 de setembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
GENTE E COISAS DA CIDADE Cisma de velhinha
Lydia Federici
Quando isto aconteceu, dona Julieta estava na casa dos 94 anos. Hoje tem um pouquinho mais. É mansa e doce de
aparência. De uma suavidade que nada consegue alterar. Tão frágil, leve e pequenina que, ao seu lado, a gente respira só pela metade. Com a impressão de que um sopro mais forte de ar a derrubará.
Dorme pouco. Leva grande parte das horas noturnas a rezar. Quase não come. Resmunga docemente quando lhe aplicam a injeção diária. E, podendo, gosta de não tomar a série completa de comprimidos, cápsulas e drágeas de vitaminas. É isso que a
sustenta. Biologicamente sim. Isso e o grande espírito que a anima. Lúcido. Inquebrantável.
Dona Julieta apega-se à vida com todas as forças de sua vontade. Porque tem uma missão a cumprir. Educar os bisnetos. Órfãos de mãe. Como educara uma neta que a filha, moça ainda, lhe entregara, nos últimos instantes, para criar. Caprichos doidos
da sorte. Que ela aceita com resignação. Tocando sua vida para a frente numa luta em que Deus e sua alma, felizmente, são seus parceiros.
Poucos dias depois de seu nonagésimo quarto aniversário, Dona Julieta, como acontecia periodicamente, recebeu a visita de seu neto afim.
"Foi muito bom você ter aparecido". Além da ternura habitual, havia um ar de alívio em sua confissão. Ele, preocupado, sondava-lhe o rosto enrugado. Segurou-lhe a mão e, com dedos experientes, tomou-lhe o pulso. Não estava passando bem? Que havia
de anormal? Que sentia?
A velhinha soltou o braço. Nunca se sentira tão bem. Não precisava dele como médico, não. O negócio era muito mais grave. Que era, então?
"Recebi, há três dias, a caderneta do banco. Estava lá para eles fazerem as contas dos juros". Torceu as mãos, que repousavam, unidas, sobre o colo magro. Hesitava em continuar. Parecia lutar com um problema íntimo. Por fim, decidiu-se. "As contas,
pelos meus cálculos, não estão certas. Quando você descansar e tiver cinco minutos livres, meu filho, quer fazer as contas num papel?"
"Ora, vovó, não se preocupe. Depois eu faço, se isso puder tranquilizá-la. Aliás, tranquilize-se desde já. Os bancos não se enganam. Eles têm máquinas que não erram". E acariciou-lhe a cabecinha branca. Como a dizer: "Sua pobre cabeça é que está
cansada. Meio confusa. Com cismas tolas".
Dona Julieta sossegou. À noite, tentou levá-lo para a mesa da sala. Onde já colocara um bloco e um lápis. Mas ele tinha que ver uns amigos. Ficou para o dia seguinte. No dia seguinte, ele também não teve tempo. No terceiro dia, dona Julieta, logo
pela manhã, cercou-o.
"Enquanto lhe sirvo o café, você não quer fazer o favor de ver essas contas?" Empurrou-lhe a caderneta do banco, lápis e papel. Ele não teve outro jeito senão atendê-la. Fez as contas. Refê-las. Não era cisma dela, não, como julgara. O banco se
enganara de fato.
Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
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