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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 209)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 5 de setembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Complexo

Lydia Federici

Fora menina adorável. E conseguira transformar-se em mocinha adorável. Passando pelos caprichos naturais da transição sem problema de monta. Chorara um pouco para ganhar seu primeiro sapato de salto. E as meias compridas. Com uma piscada maliciosa convencera a mãe que tinha o direito de usar um esmalte menos infantilmente rosado. Conquistara aumento de mesada com seis noites de carinhos especiais junto ao pai. Tudo ela conseguiu de manso. Porque, verdadeiramente, crescera. E porque tinha jeito para convencer. E tudo lhe foi concedido sem briga. Nem susto. Porque eram solicitações razoáveis. Que os pais, compreensivos, indulgentes e ricos, podiam satisfazer.

E, assim, sem problemas, ela passou a ser broto. Mas broto de verdade. Natural. Sem sofisticação. Verde, tenro e alegre como broto de primavera. Um raiozinho de sol. Uma caixa de música. Uma gota de essência natural. Toda ela alegria. Alegria irradiante. E benfazeja. Um verdadeiro amor!

O problema apareceu quando, no terreno vazio, ao lado do bangalô em que morava, construíram um prédio de apartamentos de alto preço. Com quinze janelas espiando o jardim e o quintal verde de sua casa.

Enquanto o levantavam, cobriam, rematavam e pintavam, tudo correu bem. Mas na semana em que algumas famílias, felizes, passaram a debruçar-se nas janelas largas e ensolaradas, a despreocupação de Maria Inês foi sumindo. No começo, ela própria não conseguiu atinar com a razão. Só sabia que não gostava de ver as toalhas grandes e felpudas dependuradas nas áreas de serviço. Que pensariam os vizinhos das toalhas desbotadas que apanhavam sol no gramado de sua casa?

E ela, que sempre vivera a sorrir, procurando, com alegria, o prazer de novos conhecimentos e amizades, passou a evitar, envergonhada, a gente moça dos apartamentos do lado. Parecia-lhe que riam dela. Complexou-se toda.

Numa bela manhã de sol, Maria Inês entrou, como um furacão, na cozinha.

"Mamãe. Você não pode dizer à burra da Maria que estenda os lençóis remendados de forma mais discreta? Estão lá. Bem na frente dos apartamentos. Todo mundo deve estar rindo. Ela que ponha os lençóis rasgados do lado de cá". E seus olhos, rasos d'água, serviam de moldura ao patético da voz entrecortada.

Dona Luiza pestanejou. Nunca vira sua filha chamar alguém de burro. De mais a mais, naquela explosão de raiva e vergonha. Pousou, com calma, a xicarazinha de café sobre a pia. E essa agora?

"Maria Inês". A mocinha continuou a andar. Voltou a chamá-la. Com voz autoritária. A filha parou. Lágrimas escorrendo-lhe pelas faces, quando se voltou. Dona Luiza sentiu o coração apertar-se-lhe. Era a primeira vez que via a filha assim tão perturbada. "Escute, minha filha. São lençóis rasgados? Não. São lençóis muito bem remendados. Que eu mesma consertei. Que vergonha há em saber aproveitar lençóis velhos? Você pensa que todo mundo só usa roupa nova? E tem sempre roupa nova?"

Mas a moça não quis compreender. Deixou de aparecer no quintal. Retraiu-se. Azedou-se. Até que viu um lençol remendado secando numa das janelas do apartamento. Aí, perdeu o seu complexo. E voltou a ser o que sempre fora.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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