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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 208)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 4 de setembro de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

O começo é duro

Lydia Federici

Não desanime, rapaz. O começo é duro. Olhe. Conto-lhe uma história. Que aconteceu numa tarde. Logo depois do almoço. Nessa hora gostosa e modorrenta em que todos invejam os espanhóis inventores da sexta. Hora que só alguns afortunados aqui conseguem ter. Puxando uma soneca reparadora.

No silêncio preguiçoso, um grito agoniado principiou. Repentino. Forte. Estridente. E foi morrendo aos poucos. Num gemido de arrepiar. Todo mundo retesou o corpo. Prendeu a respiração. Que seria?

Segundos depois,guinchos rápidos, em estertor, liquidaram de vez o sossego dos que descansavam. Pondo o coração de todos a bater. Descompassado. Quem, àquela hora imprópria, passada havia muito a Páscoa, distante ainda o Natal, estaria sacrificando um pobre leitão?

Outros sons se seguiram. Inumanos sempre. Ora mugidos de boi. Ora bramidos de fera. De repente, como que um arrulhar de pomba-rola. O cacarejar mal imitado de uma galinha. Pouco a pouco, a vizinhança sossegou. Uns, de ouvidos mais treinados que outros, foram percebendo que aquilo era apenas a voz desajustada e inexperiente de uma corneta.

Mas quem, na vizinhança, se divertia daquela forma bárbara?

Ora. Pedrinho. O "Irmão". Perguntaram-lhe se queria fazer parte da fanfarra do colégio. Qual o garoto que não se entusiasma? Ele se entusiasmara. E pronto. Principiara o aprendizado três meses antes do 7 de setembro. Justamente numa tarde de sábado. Morna e preguiçosa.

O primeiro ensaio terminou logo. Dona Helena, apertando a cabeça, sopitou o entusiasmo corneteiro do filho. Aquela não era hora. Aquele não era jeito de aprender. Que estudasse no colégio. Ali, em casa, só se fosse bem baixinho. Pra não assustar ninguém.

Pedrinho obedeceu. Acontece que piano pode ser estudado em surdina. Corneta, não. Ou se lhe dá toda a pressão necessária. Ou então não sai nada. Só assobio de vento, canalizado. Ou de vendaval. Pedrinho, aborrecido com as irmãs menores que escondiam risadas zombeteiras atrás da mão, murchou. Não era assim que ele havia compreendido a cooperação da família. O orgulho que ela deveria sentir pelo nascimento de um corneteiro garboso. Desiludido, amargurado, tonto de tanto assoprar, com as bochechas doloridas, Pedrinho guardou a corneta. Com triste carinho. Teria que desistir? Só por que não acertara logo na primeira vez? Quem nasce sabendo?

E a vizinhança sossegou. Continuou a modorrar no silêncio das tardes.

Um mês depois do primeiro susto, umas cornetadas vibrantes voltaram a encher o ar. Já não eram sons dolorosos. Inarticulados. Soltos. Antimusicais. Eram notas bonitas. Atacadas e sustentadas com exatidão. Seguiam-se com ritmo. Formando já um ou dois compassos de marchas conhecidas. Que progresso! É que Pedrinho treinava no colégio. Azucrinando os ouvidos da vizinhança de lá.

Pedrinho agora é bamba na corneta. A vizinhança de cá vai ouvi-lo, com orgulho, no desfile do 7 de Setembro.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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