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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 205)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 31 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Camisinha de bebê

Lydia Federici

A senhora parou diante da vitrine de uma das lojas da cidade. Coisa, aliás, que fazia habitualmente. Parou e, durante muito tempo, com a mão enluvada segurando a face, perdeu-se em contemplação. Não havia joias atrás do vidro. Que a fizessem sonhar. Tampouco vidros lapidados de perfumes finos. A relembrar-lhe coisas. Também não era exposição colorida de fazendas. Dessas fazendas que vitrinistas levam horas a arrumar. E que têm o condão de fazer com que toda mulher se perca na fofeza de suas dobras.

A senhora parara diante de uma vitrine de roupinhas infantis. E ali, como nunca acontecera, se embalava, toda ternura e sonho diante das manchas rosas, azuis, brancas e cor de peito de canário cantador.

Entrou na loja. Pisando de leve. Mal encostando, no chão, o salto alto e barulhento dos sapatos. Entrou a sorrir. A cabeça inclinada para o lado. Cumprimentou, com suavidade, a vendedora que lhe pareceu mais simpática. A moça sorriu um sorriso profissional. Seu "bom dia", impessoal, sem cor, numa voz metálica, chocou-se, duro, contra a delicadeza da jovem senhora.

"Gostaria de ver umas camisinhas bordadas para bebê. As mais mimosas que você tiver, minha filha". O pedido foi feito quase num sussurro.

A moça tornou a esboçar um meio sorriso. VOltou-se para as prateleiras. Correu o indicador pelas etiquetas. Abriu uma gaveta num gesto rápido. Fazendo-a correr quase até o fim. Mergulhou as duas mãos na pilha de pequenos envelopes transparentes de plástico. Enfeixou tudo de uma só vez. E, numa meia volta brusca, atirou o monte crepitante sobre o vidro do balcão. Os envoltórios, soltos da pressão, espalharam-se na superfície lisa. Um deles escorregou para o chão. A caixeira ergueu-o e, com enfado, largou-o junto aos outros.

"Prefere as brancas? Ou com bordados em cor? As brancas são mais baratas". Dizia aquilo com voz monótona de tabuada. Como não recebesse resposta, olhou para a freguesa. Que a encarava de um jeito esquisito. Assustada. Meio indignada, mesmo. Que havia? Não estava se sentindo bem? Ou não era aquilo que tinha pedido? Com mãos nervosas principiou, atarantada, a juntar as peças. Batendo os envelopes contra o vidro. Para emparelhá-los.

A senhora, que havia tirado as luvas, pousou as duas mãos sobre os pulsos da vendedora.

"Deixe tudo aí, minha filha. Eu mesma escolho. Não se preocupe". Pequeninas rugas se haviam acentuado ao redor dos olhos. Mas a voz era controlada. Baixa. Quente. Macia. Passou, inconscientemente, as palmas das mãos pela saia justa. E, com cuidado, principiou a separar os plásticos. Alisando-lhes as dobras. Acariciando, com a polpa dos dedos, o bordado levemente saliente das camisinhas. Suas feições descontraíram-se. Iluminaram-se-lhe os olhos. Toda ela se beatificou.

A vendedora, encostada ao balcão, olhou para uma companheira. Levantou o lápis e fê-lo girar na fronte.

Não é louca, não! Você não é capaz de entender que camisinha de bebê tem que ser tratada com carinho? Com esse carinho?


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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