GENTE E COISAS DA CIDADE Ai! doutor
Lydia Federici
Seu José é um velho rijo. Nasceu na Espanha ensolarada. Até os 15 anos lavrou a terra de seus pais. Comeu-lhe o trigo.
As "papas". As frutas sumarentas. Matou a sede numa nascente de água branca como o leite. E na boca de uma botija de vinho áspero. Enjoado de destocar a terra pedregosa, fez sua trouxa e botou-se para o Brasil. Apareceu em Santos. Há coisa de 60
anos. Por aqui ficou. Trabalhou e enriqueceu. Conservou o rosado das faces magras e angulosas. Por mais dura que tivesse sido sua luta pela vida, nunca se esqueceu de sorrir. Mostrando dentes não muito brancos. Nem Brilhantes. Mas grandes,
compridos, perfeitos. E fortes.
Com esses dentes, seu José chegou aos 75 anos sem nunca saber o que fosse dentista, benza-o Deus. Chegou aos 75. Mas deles, assim risonho e feliz, não passou. Aos 75 anos e um dia, seus dentes, em coro, puseram-se a gritar. E o velho, por fora
forte, empinado e rijo, sentou-se com a alma a tremer, na cadeira branca. o que não sofrera em 75 anos, sofreu, dia sim, dia não, durante um mês, naquela cadeira cômoda. Onde, entretanto, seu corpo, teso, não encontrava jeito de sentir-se a gosto.
O dentista, no terceiro dia, penalizado com o sofrimento suado do velho senhor, tornou-se comunicativo.
"Se doer muito, pode gemer, seu José. Todo mundo, aqui, geme à vontade. Um 'ai!' ajuda a desabafar". E, com paciência, esperava o velho enxugar o suor da fronte.
"Gemer não gemo. Soy homem ou soy o que", replicava, ofendido, o espanhol duro.
"Não é na sua terra que há as mais belas pragas do mundo? Pragueje, então, seu José". O dentista tinha receio de que seu cliente estourasse.
"No puedo. Não na presença dessa senhorita". Sorriu, galantemente, para a enfermeira. Atrapalhado, enxugava, com o guardanapo de papel, as grandes mãos de dedos quadrados.
E assim, sem um ai!, sem um gemido afogado na garganta, seu José aguentou todo o tratamento. Seu silêncio obstinado, que no começo preocupara o dentista, acabou por atormentá-lo. Por espicaçá-lo. Ouvir um ai! daquele homem durão era o desejo
principal que bailava no consultório. Entre o dentista e a sua ajudante.
"Nem hoje não gemeu. Mas esse homem é de ferro?" admiravam-se, decepcionados. Esse desejo nunca foi satisfeito. Seu José subia pelo encosto da cadeira. Empapava de suor as costas e o peito da camisa. Mas gemer não gemia.
No último dia, tudo terminado, abraçaram-se os dois como bons amigos.
"O senhor nos logrou, seu José. Não houve jeito de fazê-lo gemer".
O espanhol empertigou-se: "Es que soy hombre".
Quando recebeu a conta, dias depois, em casa, esqueceu-se de sua força. Gritou um "ai! doutor..." tão doído e forte que, se ouvido, teria deixado plenamente satisfeitos o dentista e sua bela ajudante.

Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal
|