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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (4 - crônica 204)

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Clique na imagem para voltar ao índice desta seçãoEm mais de três décadas de atuação diária, Lydia Federici publicou milhares de crônicas no jornal santista A Tribuna. A Hemeroteca Pública Municipal de Santos criou um Espaço Lydia Federici, onde estão expostos desde sua máquina de escrever até os troféus desportivos, bem como os organizados álbuns de recortes reunindo todos os seus textos publicados. Esta crônica foi publicada em 30 de agosto de 1962 em A Tribuna (ortografia atualizada nesta transcrição):
 
GENTE E COISAS DA CIDADE

Ai! doutor

Lydia Federici

Seu José é um velho rijo. Nasceu na Espanha ensolarada. Até os 15 anos lavrou a terra de seus pais. Comeu-lhe o trigo. As "papas". As frutas sumarentas. Matou a sede numa nascente de água branca como o leite. E na boca de uma botija de vinho áspero. Enjoado de destocar a terra pedregosa, fez sua trouxa e botou-se para o Brasil. Apareceu em Santos. Há coisa de 60 anos. Por aqui ficou. Trabalhou e enriqueceu. Conservou o rosado das faces magras e angulosas. Por mais dura que tivesse sido sua luta pela vida, nunca se esqueceu de sorrir. Mostrando dentes não muito brancos. Nem Brilhantes. Mas grandes, compridos, perfeitos. E fortes.

Com esses dentes, seu José chegou aos 75 anos sem nunca saber o que fosse dentista, benza-o Deus. Chegou aos 75. Mas deles, assim risonho e feliz, não passou. Aos 75 anos e um dia, seus dentes, em coro, puseram-se a gritar. E o velho, por fora forte, empinado e rijo, sentou-se com a alma a tremer, na cadeira branca. o que não sofrera em 75 anos, sofreu, dia sim, dia não, durante um mês, naquela cadeira cômoda. Onde, entretanto, seu corpo, teso, não encontrava jeito de sentir-se a gosto.

O dentista, no terceiro dia, penalizado com o sofrimento suado do velho senhor, tornou-se comunicativo.

"Se doer muito, pode gemer, seu José. Todo mundo, aqui, geme à vontade. Um 'ai!' ajuda a desabafar". E, com paciência, esperava o velho enxugar o suor da fronte.

"Gemer não gemo. Soy homem ou soy o que", replicava, ofendido, o espanhol duro.

"Não é na sua terra que há as mais belas pragas do mundo? Pragueje, então, seu José". O dentista tinha receio de que seu cliente estourasse.

"No puedo. Não na presença dessa senhorita". Sorriu, galantemente, para a enfermeira. Atrapalhado, enxugava, com o guardanapo de papel, as grandes mãos de dedos quadrados.

E assim, sem um ai!, sem um gemido afogado na garganta, seu José aguentou todo o tratamento. Seu silêncio obstinado, que no começo preocupara o dentista, acabou por atormentá-lo. Por espicaçá-lo. Ouvir um ai! daquele homem durão era o desejo principal que bailava no consultório. Entre o dentista e a sua ajudante.

"Nem hoje não gemeu. Mas esse homem é de ferro?" admiravam-se, decepcionados. Esse desejo nunca foi satisfeito. Seu José subia pelo encosto da cadeira. Empapava de suor as costas e o peito da camisa. Mas gemer não gemia.

No último dia, tudo terminado, abraçaram-se os dois como bons amigos.

"O senhor nos logrou, seu José. Não houve jeito de fazê-lo gemer".

O espanhol empertigou-se: "Es que soy hombre".

Quando recebeu a conta, dias depois, em casa, esqueceu-se de sua força. Gritou um "ai! doutor..." tão doído e forte que, se ouvido, teria deixado plenamente satisfeitos o dentista e sua bela ajudante.


Imagem: reprodução do álbum de recortes de Lydia Federici, no acervo da Hemeroteca Municipal

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